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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Ensinamentos do Serjão

Taí um texto sobre o meu mestre e de muitos, Sérgio de Souza, que se foi em 2008 e deixou muitas saudades e ensinamentos. Sempre que eu puder, trarei textos, lembranças, sobre quem foi Serjão e o que significa para o jornalismo. Esse é da minha amiga Natalia Viana, repórter das melhores. Para quem tiver interesse no trabalho dela, fica a dica do seu livro, Plantados no Chão, sobre assassinatos políticos no Brasil e que pode ser baixado na internet.

Quando entrei na Casa Amarela, havia decidido que era a última chance que eu dava ao jornalismo. Havia saído fazia alguns meses da faculdade que conseguiu matar qualquer paixão que eu pudesse ter pela profissão, com aquela velha fixação pelo lead e pelos manuais de redação; havia feito algumas reportagens como free-lancer, as quais haviam sido totalmente deturpadas por editores da indústria; estava trabalhando em um grande site de internet, e o trabalho em si não era tão bonito quanto o nome do cargo: simplesmente rescrevia, o dia inteiro, press releases que chegavam à minha mesa de editora. Saí para ser estagiária da Caros Amigos, sem saber que era ali que começava, pela primeiríssima vez, a única escola de jornalismo de verdade que freqüentei na vida.
Por mais próximo que fosse de nós, os mais novos, Serjão nunca deixou de lado a tarefa de ser um professor. Desempenhava com zelo, mas apenas a quem quisesse ouvir. Jogava, sempre, um ensinamento ou outro pra a gente pescar – alguns deles eu relembro agora, para compartilhar, em texto escrito, e portanto sem data de fim, com novos repórteres que virão depois de mim.
Sérgio de Souza me ensinou a ter uma fidelidade canina ao leitors – fidelidade essa tão marcada nas páginas de Caros Amigos. Assim: “Pense no leitor sempre: antes, durante, e depois de fazer a reportagem. E quando estiver dormindo também”. Um pouco, esse ensinamento resume para mim quem foi o Serjão. Serjão me ensinou a amar o leitor acima de tudo.
Impressionava, no homem, a tranqüilidade com que ele encarava cada problema – e cada problemão! – que nos batia à porta. Quando eu chegava, na pressa dos vinte anos, com uma idéia para uma reportagem, ele sempre incentivava, fazia todas as perguntas para as quais eu não tinha resposta, e me mandava sair à rua: “Leve o tempo que for preciso, não se preocupe com o prazo”. Para ele, caso raríssmo na imprensa brasileira de hoje, valia sempre mais uma reportagem bem feita do que uma feita rapidamente.
Na Caros Amigos levávamos dois, até três meses para construir uma matéria, exagerávamos no tamanho, brincávamos com as palavras. Serjão aceitava todas as tentativas, todos os formatos, sempre com seu olhar clínico e seu bom-senso característico. Transformava cada idéia maluca em reportagem boa! Serjão me ensinou que toda idéia é válida, e toda pauta é um aprendizado.
Fazer uma reportagem com ele era bom, era muito solto. A gente saía na rua e dava alguma satisfação de tempos em tempos. Estilo antigo, acredito, duma época em que o editor confiava no repórter, o repórter confiava no instinto, e o jornalismo era bordado à mão e não produzido a rodo como em máquina de indústria. Cada reportagem tinha sua história, e seu desenvolvimento, e Serjão respeitava o tempo de cada uma. Serjão me ensinou sobre a criatividade imprescindível ao bom jornalismo. Nas suas mãos, cada história era única – quantas vezes fizemos pautas que já haviam sido feitas dezenas, centenas de vezes, com resultados totalmente inovadores.
Outra coisa: Serjão não deixava ninguém mentir, ou enganar, em troca de boa informação, prática comum em boa parte da imprensa. Sempre, ele dizia, se apresente como repórter; sempre tente explicar por que a sua reportagem é importante, por que a pessoa deveria colaborar; nunca interfira nos fatos, apenas os relate.
“Não é responsabilidade do jornalista mudar a realidade”, dizia o Serjão, “O nosso papel é apontar os problemas para que as pessoas mudem”. Esse foi um dos ensinamentos mais valiosos. Todos os que cobrem as misérias do mundo sabem como é difícil voltar para casa e ter deixado para trás destruição e dor, e como é louca a vontade de interferir e transformar tudo. Mas Serjão ensinava que a nossa arma era a caneta (a dele, o lápis com que rabiscava os nossos textos), e com ela fazíamos muito.
Reportagens como as de Caros Amigos mudam as pessoas por dentro, e essa mudança é debatida na mesa do bar, é espalhada na sala de aula, passa para outras pessoas, e por aí vai, numa silenciosa e minúscula revolução. Serjão era, aos 73 anos, um revolucionário.
Quando vim para a Europa, vim para ver como funcionava por aqui a imprensa, tendo dinheiro de sobra e muito talento para inovar. Vi coisas boas, mas também fiquei muito decepcionada. Tudo eu contava a ele por email. Uma das suas últimas respostas foi:
“Quer dizer que a mediocridade não é “privilégio” exclusivo de nossos jornalistas? Sabe o que é, Nat? Esse mundo bem cheiroso das redações ricas e seus bem postos e obedientes empregados não é para o bico de qualquer um como nós. É um mundo que a gente não compreende, mas isso não é novidade. Foi sempre assim, mesmo antes da existência dos manuais de redação. Quem ousa tentar romper esse estado de torpor paralisante é excluído loguinho. Se bem que a gente se diverte neste nosso apartheid, né?”
Serjão me ensinou a dignidade – e a diversão – de buscar ser livre dentro do jornalismo-indústria. Ser livre para contar uma história como ela merece ser contada vale mais que qualquer salário, vale mais que qualquer prêmio, vale uma vida dedicada a isso. Cada novo desafio, cada nova idéia, vale a pena. Se for original, se romper com o que está aí, terá o apoio de Sérgio de Souza.
Ainda na Caros Amigos, uma das últimas coisas que Serjão me ensinou, junto com o repórter João de Barros, foi sobre o “imponderável da silva”, muito útil nas reportagens investigativas. Uma vez, Sérgio me pediu que fizesse plantão na porta da casa de uma figura que não dava entrevista para ninguém. E se ela não falar? “Aí e o Imponderável da Silva”, disse ele, indicando que no jornalismo como na vida, muitas vezes não dá para prever o que pode acontecer. Numa investigação, nunca se sabe de onde vai sair a resposta para a pergunta crucial, a informação mais valiosa; as grandes investigações são terreno do imponderável, e a tarefa do repórter é se manter vigilante, aberto, para ele. Apostar em todas as fichas; seguir todas as pistas, e acreditar nele, o imponderável.
Foi por culpa do imponderável da silva que Serjão morreu no final de março de 2008, de maneira totalmente inesperada. E foi por culpa do mesmo imponderável da silva que eu não estava por perto, acabei me demorando na Europa. Mas por mais triste que seja, Serjão me ensinou a amar e abraçar o imponderável. E a seguir em frente, sempre. Por mais isso, Serjão, minha gratidão eterna.

5 comentários:

Claudio Motta Jr disse...

Thiago,
Serjão é mestre.
Parabéns pelo Blog!

Claudio Motta Jr disse...

Thiago,
Serjão é mestre.
Parabéns pelo Blog!

Thiago Domenici disse...

E aí meu caro, tudo bem com vc? Valeu pela visita ao blog, grande abraço! Thiago

Anônimo disse...

Falta danada que faz o Serjao, hein chefe...

Bom saber que o que ele deixou ainda se mantém vivo dentro de todos nós que passamos pela vida dele.


O blog tá lindao viu! E os textos sao ótimos! Parabéns!!

Bjin

Anônimo disse...

ai que saudades que aperta o peito...

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