O entrevistado em sua casa em São Paulo |
(por Ricardo Viel, publicado originalmente na revista Retrato do Brasil, edição 35, junho de 2010. Fotos de Paula Sacchetta.)
Retrato do Brasil – Qual a sua trajetória de vida até se tornar um produtor de museus?
Marcello Dantas – Sou carioca, morei em Brasília, e atualmente fico em São Paulo. Quando terminei a escola, fui estudar diplomacia. Em um dado momento, entendi que jamais poderia fazer isso na vida. Sempre me interessei pela linguagem. Sabia que meu negócio era esse: visual, teatral, algo assim [Marcello se formou em cinema e televisão pela New York University]. Aos poucos, fui descobrindo possibilidades técnicas e inventando formas de aplicá-las. Entrei nessa história quando a tecnologia era inacessível, cara e pouco funcional.
RB – Antigamente, nos museus havia a regra de que não é permitido tocar, mas somente observar. Isso mudou?
MD – Agora é justamente o contrário: “Por favor, toque.” Isso de não tocar está muito associado ao colecionismo, uma atitude acadêmica de resolver tudo com os olhos. Não acredito nisso. Todos os elementos do sentido me dizem muito. Não se tinha a noção do que o museu poderia ser. Imersivo, educativo, inspirador. O museu, durante muitos anos, por uma falta de percepção, virou um depositário, um armário, um lugar para guardar coisas velhas. Quando, na verdade, o nome “museu” vem de templo de musas, ou seja, lugar onde a gente ora para nossas musas nos inspirar. Não acho que os museus clássicos, como o Louvre, o Prado, vão deixar de existir. Só não é possível fazer mais desses. Essa linguagem se esgotou. O que existe é o que existe. Você não tem mais como adquirir aquelas coleções. Aquela arte não é mais produzida. Quem a tem não vai querer vendê-la ou só vai vender o que é de segunda.
RB – E países menos abastados dificilmente terão...
MD – Não vão ter. Vai virar a franquia do Guggenheim. Manda o que está sobrando para cá! Nada contra o Guggenheim como instituição, mas esse modelo não é criativo. Vai repetir aquilo que já existe e que é sucesso em outro lugar. Acho muito mais divertido e interessante o desafio: ok, não vamos ter a Monalisa, mas vamos fazer o museu do nosso tempo, com a cultura que temos, que é muito mais interessante do que abrir uma franquia de um museu.
RB – Esse museu “clássico” se esgota, muitas vezes, por ser excludente, porque exige um conhecimento prévio para ser visitado. A ideia é torná-lo mais acessível?
MD – Os museus sofrem, na maioria dos casos, de fracasso de público. Isso porque existem para seus curados e para os outros curadores. Uma coisa arrogante. É fácil falar com seu colega. Agora, tente falar com crianças e jovens que são 50% dos que frequentam museus. Falar com quem não teve o mesmo background socioeconômico, não teve acesso àquela informação e ainda assim seduzi-los. E fazer isso sem nenhuma gota de arrogância? Esse é o desafio.
RB – E essa mudança de conceito se inicia em que momento?
MD – O primeiro museu a mudar um pouco a percepção quanto à linguagem foi o do Holocausto, em Washington, em 1990. Várias exposições nos anos 1980 apontaram para essa mudança, que aconteceu porque há várias causas no mundo que são tremendamente nobres, mas cujas coleções não dão em nada. Ou você utiliza essas novas linguagens, ou vai fazer um museu que nasce velho. Por exemplo, como fazer um museu sobre a língua? Vou botar um monte de livros? Fazer biblioteca? Citações na parede? Não é isso. Preciso criar um envolvimento para que se entenda a vida dessa língua, a palavra, o som, sua cordialidade.
RB – Como o Brasil ingressa no cenário dos construtores desses novos espaços?
MD – Dez anos depois do museu do Holocausto, o Brasil já é referência. Muitos artistas aqui já estavam antenados a novas linguagens expositivas. Essa é uma das áreas em que somos respeitados. Como na música, na publicidade e na arquitetura, o Brasil tem voz em design de exposições. Há vários artistas, cada um com seus conceitos e background. Eu, como bagagem, trago a cultura tecnológica, audiovisual, interativa.
"Quando foi a última vez que você escreveu uma carta? É bobagem tentar diferenciar o que é e não é tecnologia"
RB – Há alguma explicação para o fato do Brasil ser referência nisso?
MD – Tem um aspecto de mistura de linguagem que acontece aqui de maneira muito forte. Uma quebra do enrijecimento acadêmico, que aqui não resiste. A gente ama misturar linguagens e faz isso com naturalidade. Os museus eram pensados como uma entidade elitista, para uma determinada fatia da sociedade. No Brasil, como não existiam esses feudos, era fácil chegar com uma coisa nova. É a soma de um país que tem uma cultura naturalmente antropofágica, miscigenadora, com a demanda de que você crie uma linguagem que seja popular. O ambiente era favorável. Aqui não tem coleção e há um abismo educacional grande. Tem uma massa para alimentar culturalmente. Outra coisa: quarenta anos de ditadura fizeram com que não se criasse nenhum museu relevante. Depois, tivemos mais dez anos de estagnação econômica. Ficou uma lacuna. O país foi acordar no final do século XX, e a Mostra do Redescobrimento, em 2000, ajudou muito. É um marco, um momento em que todo mundo pôde crescer de patamar de produção. RB – Você não tem medo de ficar refém da tecnologia, de que as pessoas não vejam seu trabalho pelo viés do conteúdo?
MD – Sei muito bem desse perigo e trabalho muito para não cair nessa armadilha. A tecnologia sozinha não faz nada. A gente vai ter que olhar para o passado sempre. Ainda bem! Mas temos que reinterpretá-lo com o conhecimento do nosso tempo. O segredo está no conteúdo e na linguagem. Vivenciamos hoje a nossa realidade por meio da tecnologia e a própria educação afetiva é fortemente pautada pela mídia. Somos tocados a nos expressarmos sobre o amor através dela. Isso não é pouco importante. Construímos a percepção dessas coisas através do audiovisual. Quando foi a última vez que você escreveu uma carta? É bobagem tentar diferenciar o que é tecnologia e o que não é. Não tem esse outro mundo.
RB – E as crianças de hoje já sabem apertar todos os botões...
MD – É natural para eles. Credito essa reação contra a tecnologia a uma dose de analfabetismo tecnológico. É só uma questão das pessoas se aposentarem. O Chico Buarque tinha razão, “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Ninguém lembra para quem ele falou isso, mas a música ficou. Se você pergunta para um jovem quem é o Geisel, ele não sabe. Mas o Chico, todos conhecem. Sobrou só a música.
RB – O que você faz para dominar os assuntos que são trabalhados nos projetos?
MD – Não tenho a pretensão de saber tudo. Meu trabalho não é o de ser o curador do mundo inteiro. Sou capaz de fazer um museu sobre qualquer assunto, mas não tenho que entender profundamente. O que preciso dominar é a linguagem. Preciso entender aquelas palavras que ouvi, aquelas culturas que observei, como traduzir para uma linguagem contemporânea, que inclusive ajudo a criar. É muito mais um trabalho de tradução do que de pesquisa. Não tenho a intenção de ler todos os livros, mas me cerco de especialistas. Você pega um pouco daqui, um pouco dali e devolve algo que eles nem imaginavam que dava para fazer. O Museu do Caribe é um exemplo legal. Percebi que a questão da miscigenação é fundamental para aquela sociedade. Mas como representar a miscigenação? Gente trepando? Mistura de DNA? Caras? Comida? Comida é miscigenação. A partir das receitas daquela região – adoro cozinhar – mostramos as origens. Você adiciona os ingredientes e vê de onde vem cada coisa: isso veio dos árabes; isso, dos índios; esse, dos europeus...
RB – Nos seus museus não há aquele guia que “ensina”. Eles são desnecessários?
MD – Não precisa. Tenho que ser capaz de dar o sentido exploratório do museu para que você, com a sua curiosidade, seja capaz de se encontrar nele. Não é para sair dali sabendo tudo. Eu tento deixar a pessoa solta, para ela ir se achando, se guiando pelo faro. Não tem uma historinha linear contada por alguém. Todas as vezes que aceitei propostas neste sentido e incluí guias no projeto, tivemos problemas. Eu voltava lá, anonimamente, e via o sujeito falando cada bobagem...
RB – Já há pessoas que se inspiram ou copiam você?
MD – Quanto a copia, não me preocupo. Primeiro porque nunca faço dois projetos iguais. Não fico preso a uma técnica. O que mais quero é que venha uma geração para mudar esse cenário. Não quero mudar sozinho e nem posso. Só gostaria que, quem viesse, trouxesse uma sensibilidade real em relação ao conteúdo. Essa é a mágica deste trabalho. Tecnologia é a parte fácil, perto do que é articular a linguagem. O segredo é estrada. Ler jornal do mundo todo, se interessar por absolutamente tudo. A fórmula é viver e ter sensibilidade. Eu só trabalho, mas para mim é natural. É minha vida. O livro que leio, pode ser de poesia, uso no meu trabalho. Minhas filhas são enormes fontes de inspiração. Aprendo muito com elas. Essa linha de fronteira do que é trabalho para mim não existe. Várias vezes acordo três da manhã porque veio uma ideia.
3 comentários:
maravilhoso o trabalho, inspiradora a visão mas... por que a materia nao tem um link sequer pro site do Marcello ou para seus trabalhos? nada mais apropriado num blog, nao?
Tem razão, Rene. Já está feito e segue aqui: http://www.magnetoscopio.com.br/
Obrigado,
Thiago Domenici
Excelente matéria. Mostrou a simplicidade de quem faz algo complexo: atrair a atenção das pessoas e se comunicar.
Posso publicar em www.maniamuseu.wordpress.com
abs.
Rafael Tunes
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