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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Um grito solto no ar no Teatro Eva Herz

Georgette Fadel relembra com música e sensibilidade as obras de Gianfrancesco Guarnieri, num repertório com arranjos feitos por Edu Lobo e Carlos Lyra. Sem contar a direção do amigo Heron Coelho. Na edição de julho da Retrato do Brasil, Izaías Almada, colunista deste NR, fez um belo texto sobre o espetáculo sob o título "Gritos e sussuros soltos no ar".

Gritos e sussuros soltos no ar
(Revista Retrato do Brasil, julho, edição 36, pág. 38-39)

O ensaísta e crítico teatral Sábato Magaldi, em seu livro “Panorama do Teatro Brasileiro” (primeira edição de 1962), diz, após analisar as três primeiras peças escritas pelo autor, ator e compositor Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006): “Entre os jovens autores, Gianfrancesco Guarnieri é o único que obteve apenas êxitos, sem ter chegado ainda aos trinta anos de idade. A inata vocação artística impede-o de desvirtuar os textos em função do proselitismo político. A inequívoca humanidade dos seus heróis tem falado a espectadores das mais diversas camadas, sem tornar-se o paradigma de um grupo específico. Essas virtudes prognosticam para o dramaturgo um grande futuro, entre os que mais enchem de esperanças o teatro brasileiro”.
O crítico ainda se referia, nessa época, aos textos de “Eles Não Usam Black-Tie”, “Gimba” e “A Semente”, antevendo um futuro promissor, mas longe de adivinhar que toda a carreira dramatúrgica de Guarnieri se constituiria num progressivo encadeamento de textos que, para além da “inequívoca humanidade de seus heróis”, revolvia as vísceras de um Brasil injusto, preconceituoso e totalitário, particularmente nos anos que vão de 1964 a 1979.
Dos personagens heróis quase anônimos dos morros e das favelas (“Black-tie”, “Gimba” e “A Semente”), a uma instigante passagem pelos temas da reforma agrária e da desmistificação do uso do poder através da superstição (“O Filho do Cão”), o jovem Guarnieri avança, já então ao lado do companheiro e teatrólogo Augusto Boal, pelos caminhos brechtianos, ao dar vida a duas sagas libertárias brasileiras, desta vez como luta coletiva emblemática para o tempo em que se vivia: “Arena Conta Zumbi” e “Arena Conta Tiradentes”. Tempo de guerra e sem sol...
Vivia-se o final dos anos sessenta e, no emblemático ano de 1968, o Brasil iniciava sua caminhada, deflagrada com o golpe civil e militar de 1964, para uma década mais dura de terrorismo de Estado com a edição do AI-5, um monstrengo jurídico que, entre outras arbitrariedades, fechou o Congresso Nacional, colocou a UNE fora da lei, lacrou sindicatos de trabalhadores, impôs a censura à imprensa e extinguiu a figura do habeas corpus. O rescaldo de tal violência é a prisão de milhares de brasileiros, entre eles artistas e intelectuais.
No plano cultural, os palcos e as ruas brasileiras ganharam novas arenas e nova consistência: a luta contra a ditadura. Uma década efervescente, na qual o teatro e a música popular deram o mote. No período, Guarnieri destacou-se em seu trabalho como ator, e, também, em textos como os de “Castro Alves Pede Passagem”, “Ponto de Partida” e “Um Grito Parado no Ar”. Um teatro firme, de intervenção social, de forte apelo à participação política e com uma singular curiosidade, embora não fosse essa propriamente uma novidade: o uso pungente da mais autêntica música popular.

Não foi em vão
Canções que se imortalizaram no nosso cancioneiro foram lançadas em peças de Guarnieri nesse período ou mesmo antes dele, tendo como parceiros os nomes sonantes de Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Toquinho, Adoniran Barbosa, Carlos Lyra, entre outros.
Outro parceiro, mais contemporâneo, foi Heron Coelho, diretor e roteirista de “Um Grito Solto no Ar”, show musical vibrante que circulou no primeiro semestre deste ano em São Paulo, interior e capital, como parte da temporada apresentada no SESC Pompeia. A casa de shows, com suas paredes de tijolos e tetos de vigas aparentes, abraçou comovida a figura de seis jovens que foram buscar na música teatral de Guarnieri a seiva e a inspiração para um espetáculo de rara sensibilidade.
Heron e Guarnieri se conheceram num ciclo de leituras realizado pela Funarte nos anos 90 e que inspirou Heron a realizar em 2005 o espetáculo “Arena Conta Guarnieri”, um ano antes do falecimento do autor. Nessa montagem tomou parte a atriz Georgete Fadel. A morte de Guarnieri sugere ter deixado em Heron e Fadel a expectativa de uma nova parceria. O reencontro vem com o belíssimo musical “Um Grito solto no Ar”.
Aproveitando o metafórico grito de 1973 (“Um Grito Parado no Ar”), no qual o autor põe em cena um grupo de teatro que ensaia e discute os problemas de sua sobrevivência e de ter voz e participação diante de um regime de censura e repressão, Heron homenageia Guarnieri quase quarenta anos depois com a satisfação de poder cantar em liberdade, como quem diz: Guarnieri, sua luta não foi em vão, nem a de todos aqueles que foram presos, torturados ou mesmo morreram por querer liberdade.
A troca de adjetivos no título não é apenas licença poética, mas expressa uma mudança real no Brasil, embora ainda se possa encontrar aqui e ali os saudosos da ditadura, os que ainda se arrepiam ao ouvir falar em respeito aos direitos humanos.
Com uma cenografia simples e despojada (Hevelyn Coelho e João Nunes), uma iluminação que, além de criar os vários climas para as canções, ajuda a concentrar o olhar do público no imenso espaço à sua volta (João Nunes) e o som de “gente grande”, do Quinteto Sarzi, de inegável qualidade musical nos arranjos e na instrumentalização, o espectador, que ouve e até canta alguns dos sucessos de Guarnieri, sai do teatro com a sensação de que ficaria ali mais tempo e com enorme prazer, tal a sensibilidade e a magia que o envolve.

Profundo amor
A qualidade sonora, a movimentação cênica e o arrebatamento de cada uma das canções apresentadas, contudo, têm um nome a ser destacado: Georgete Fadel. Atriz, que, aos 35 anos, vai costurando as várias facetas do seu talento e construindo uma carreira de méritos inquestionáveis, com grande domínio da voz e do corpo. Quem teve a oportunidade de assistir, entre outros trabalhos de Fadel, as recentes encenações de “Gota d’Água” (também com a direção de Heron Coelho) e “Rainhas”, a livre adaptação de “Mary Stuart” (Friedrich Schiller), é capaz de acompanhar o desenho sutil, a delicada sensibilidade na interpretação de cada uma das canções como fruto da inteligência de uma atriz excepcional. Sua capacidade histriônica e de comunicação com o público é o resultado de um amadurecimento e de uma vivência com várias experiências teatrais, entre elas a do teatro de rua. E, sobretudo, uma voz adequada às canções escolhidas, quer nos momentos de alegria ou mesmo nos sussurros de advertência ou graciosa ironia.
Num espetáculo onde o todo é harmônico, sob a direção segura de Heron, corre-se sempre o risco da injustiça, quando se elege esse ou aquele momento, essa ou aquela canção. Arrisco dizer que “Upa Neguinho” (Edu Lobo), “Vidas Rasas” (Sérgio Ricardo) e “Pois é” (Márcio Proença) são pontos altos do show, no qual não falta a voz do próprio Guarnieri numa comovente declaração de amor: “Sempre estive ao lado do povo, não por demagogia, mas por profundo amor”.
As liberdades conquistadas, como bem sabemos, deram rédea solta também a um liberalismo agressivo e egoísta. Ainda é preciso gritar por fraternidade e igualdade. O canto de amor de Guarnieri, explícito e corajoso em seu apelo por justiça, continua no ar, exigindo que ele se torne respirável e dividido entre todos.

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