Há um não-sei-que de Brasil de 1990 na Argentina de 2011; E mais: Cesar Maia vale-se de documentos coloniais para justificar sua visão colonialista. Estranho?
Lê-se na revista Sueños Compartidos, editada pelas Mães da Praça de Maio, que foi com Néstor Kirchner que a “Argentina encontrou seu verdadeiro lugar no mundo: a América Latina”. Há meias-verdades que a licença poética criada pela morte nos permite criar, penso eu, mas me permito discordar.
É certo dizer que o Pinguim, falecido em outubro último, aumentou a integração argentina com a América Latina, e aí está a União de Nações Sul-americanas (Unasul) para não nos deixar mentir. Mas a verdade é que os argentinos nos descobriram – os latino-americanos – um tempinho antes, e não foi exatamente um encontro romântico, algo como Evita-Juan Domingo. Quando a Argentina nos viu, após séculos de chamegos com a Europa, certamente não ronrronou “Ó, mi general” - mais justo com a história seria um “Mira, boludo, !que cagada! La puta que lo parió, che”.
Os argentinos, até então, sabiam da existência de uns certos sudacas – sudamericanos cagones –, mas ainda não haviam se dado conta de que dividiam conosco este cortiço, que enxergavam como um apartamento triplex com direito a vista pro mar. Foi nos anos 1990. Quem ainda não havia se dado conta dos efeitos da ditadura pré-neoliberal começou, enfim, a sentir os efeitos da pré-democracia neoliberal. Houve ainda retardatários, que só se deram conta quando a vaca já habitava o brejo, entre 2001 e 2002.
Andando pela Argentina dos dias de hoje, tenho a inevitável sensação de que este país tem um não-sei-que do Brasil de 1990. A falta de combustível nos postos simplesmente por alguma decisão estúpida e, nas filas, carros mais esfarelados que a zaga do último Mundial esperando que alguém lhes avise que é hora de parar. A falta de notas de dinheiro nos caixas eletrônicos porque, por algum motivo, o Banco Central não as imprimiu em quantidade suficiente. As moedas guardadas com um preciosismo impressionante, mais importantes que joias, raras que são por estas bandas, sabe Deus qual o motivo.
Poderia ter sido, mas não foi
A admiração pelo clássico de Buenos Aires, a lembrar-nos - aos brasileiros - nosso papel de demolidores de prédios históricos, já não se repete como antigamente. Tenho a impressão de que a capital vizinha, em algum momento dos últimos anos, deixou de ser clássica: é velha, anda desgastada (mas ainda linda, viva, vívida). Em documentário, Fernando “Pino” Solanas fala da Argentina Latente, daquela que poderia ter sido, mas não foi.
Até há pouco tempo, fazia sucesso falar do Brasil que não chegou a ser, que abortou. Uma das diferenças fundamentais entre as últimas duas décadas diz respeito a isso: autoestima. Os programas de humor dos 90 tinham como pressuposto básico de qualquer piada um país que jamais daria certo. Hoje, tirar sarro de algumas situações é mais que válido, mas o país como um todo se leva a sério, e é impopular menosprezá-lo – talvez isso explique porque o Casseta & Planeta se viu forçado a parar seu carrinho no “martelinho de ouro”.
Os argentinos, por outro lado, incorporaram com o dramatismo clássico a situação reversa, de baixa autoestima, a crença de que os problemas não têm solução. No caso deles, há uma diferença básica: a Argentina vem na trajetória de queda, há um passado semiglorioso a ser lamentado; no Brasil, a década de 1990 tinha como único significado a sequência de um grande embuste, estávamos apenas na manutenção daquilo que já vinha de há muito, tanto fazia estar fodido ou muito fodido.
Há, em boa parte dos argentinos, a sensação de que o subdesenvolvimento obtido graças a décadas de incansáveis trabalhos não vai embora – lembra como era sentir isso? Não que o nosso tenha ido embora, longe disso, mas pelo menos se pode acreditar que algum dia irá. Não é difícil recordar que, antes, dizer-se brasileiro era motivo de uma ponta de vergonha para muita gente. Nossa alteridade frente ao mundo todo se construía sobre o futebol: Pelé, Ronaldo: e nada mais. Agora, como ser brasileiro virou coisa fashion, até os ricos gostam de exibir umas notinhas de reais por aí. Inútil achar que 1990 e 2000-10 são a mesma coisa. A história é bem diferente.
Mascando coca com Cesar Maia
O artigo de Cesar Maia, ex-prefeito do Rio, na Folha do último sábado (5) é digno de nota (ou de choro?). Imbuído de excelentes intenções, o cacique do DEM vale-se de artigos de cronistas espanhóis dos tempos coloniais para desmerecer o uso da folha de coca pelos povos andinos, numa tentativa de simplificar a empreitada de Evo Morales pela despenalização do vegetal – não do pó. Entre outras coisas, cita passagem em que se fala sobre o uso constante da folha: "demônio, que é o inventor dos vícios, faz notável colheita de almas".
Quisesse realmente estudar o assunto, buscaria falar com os próprios andinos. Ou, caso não queira ir tão longe, pode buscar na internet estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) feito na década de 1990 comprovando que nada há de mal no acullico, o ato de mascar coca pelos indígenas. Poderia também ler os relatos de outros cronistas espanhóis sobre outras substâncias, como o mate. Caso Maia desconheça, a substância também foi tida como maleva, demoníaca e coisa de vagabundos durante o século XVI – poucas décadas depois, transformada em monopólio dos jesuítas, seria desdemonizada. Ou será que o ex-prefeito conhece alguém que tome mate e saia por aí dando piruetas, correndo alucinadamente pela rua, dançando durante quinze horas numa balada? Fossem os franceses a mascar coca, Maia daria a mesma peitada?
A argumentação de Maia é tão válida quanto lançar mão de depoimento obtido sob tortura para montar o perfil, digamos, de uma presidente eleita. Isso, sabemos, não ocorrerá: só mesmo um jornal ditabroso seria capaz de atitude tão desonesta. No Brasil, em que temos uma mídia aberta, respeitosa e democrática, uma reportagem deste cunho está descartada.
João Peres é jornalista e colunista do Nota de Rodapé
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