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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 15 de março de 2011

Por fim, o amor ideal

Já faz algum tempo. Acordei com uma sensação estranha, um bem-estar aparentemente sem motivos, e fiquei o dia todo com aquela imagem e som dando voltas na minha cabeça. Passados três dias, a obsessão continuava - eu a procurava nos lugares mais improváveis, precisava revê-la, nada mais importava. Então tive que admitir: eu estava amando.
Não sei explicar como foi que me apaixonei. Nem mesmo me lembro quando a vi pela primeira vez. Fato é que não havia chamado minha atenção até aquele dia em que a descobri esplendida, destacada entre as demais, em um monótono artigo de revista. A partir dali, aquelas três silabadas, seis letras (duas vogais e quatro consoantes), mudaram minha vida. A palavra Candura me havia enfeitiçado e dado início a uma nova fase na minha vida. Por fim, o amor ideal.
Fomos felizes e nos amamos de verdade, sem cobranças, sem fazer planos, só aproveitando cada momento juntos. Com o tempo a nossa relação acabou se desgastando. Por sorte, não sofri. Um novo amor apareceu na minha vida nem bem eu havia me despedido da Candura. A palavra Sofisticado era a nova dona do meu coração. Entrei novamente de cabeça e vivi, com igual intensidade, como se fosse a primeira vez, uma paixão literária. Foi uma relação totalmente carnal. Amei a Candura por seu significado, sua representação, sua simbologia. Com Sofisticado a atração era puramente estética. Visual e sonora. Foi extremamente prazeroso.
E vieram muitas outras. Cada uma com sua particularidade, seu jeito único. Um circunflexo, a perninha da cedilha, a ondulação do til, a graça do s com som de z...
Aos poucos fui percebendo as vantagens de se encantar por uma palavra e não por uma pessoa. Não existe nenhuma chance de rejeição e há a liberdade plena para que você reparta seu amor com outras. Pode acontecer de amar duas, três ao mesmo tempo, e elas não se incomodam. Agora mesmo estou namorando Recordo e flertando com Elegia. Miudinha, tímida, quase passa despercebida. Mas tem um charme e um ar de mistério que me encantam. Além disso, seu sotaque em castelhano é irresistível. Aliás, essa é a única modificação que permito. Não aceito inclinações ou variações. Sofisticação, por exemplo, me parece de um mal-gosto tremendo. Cândido me dá até enjôo. Não as quero com retoques ou adereços. As amo virgens, nuas e sem retoques.
Fica, então, a minha dica. Se você só se apaixona por pessoas, sugiro que reveja seu modo de pensar o amor. Já tive casos com músicas, livros, lugares e, agora, palavras. Vale muito a pena.
É importante, no entanto, fazer uma advertência. Assim como acontece na relação entre seres humanos, não se sai por aí buscando uma palavra para querer. Não adianta abrir agora o dicionário e tentar se apaixonar por Medíocre ou Burocracia. Os acasos da vida se encarregam de coloca-las no seu caminho. Faça sua parte. Esteja aberto e receptivo para ser seduzido por uma. O resto vai acontecer naturalmente.
Olha aí, Naturalmente. Na-tu-ral-men-te. Bem interessante, não acha? Não é assim uma Candura, uma Elegia, mas tem lá a sua graça.

Henrique de Melo Sabines, mineiro, 30 anos, trabalha na ECT e se dedica à astronomia nos fins de semana. Fã de Drummond, começou a escrever por recomendações médicas. É um dos autores do espaço Cronetas no NR. Ilustração de Caco Bressane.

2 comentários:

Anônimo disse...

Sensibilidade.Ironia.Doçura. Três palavrinhas para tentar classificar esse texto saboroso. Obrigado Henrique

Unknown disse...

Esplêndido, tão quão a palavra!

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