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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Mesmo que não pareça

Falam que a crônica é a mais pé-de-havaiana, rasteira, ralé, carne de segunda, superficial dos gêneros literários. Sendo o cronista um mequetrefe, um fichinha, um reserva que jamais medirá ombros com um romancista. Este sim, como já disse um romancista, o camisa dez da literatura.

Também falam que os grandes temas: amor, morte, amor, morte não se prestam à pena do cronista. A pena estaria condenada a observar e descrever um cachorro atravessando a rua, um homem à janela, uma senhora numa cadeira de rodas. Enquanto o romancista chega perto de uma sinfonia, o cronista aproxima-se do piu-piu de um passarinho.

Como as asas que Deus me deu são de cronista, vou me socorrer de um poeta, o fabuloso Paulo Leminski, para começar a história. Escreveu ele: "Guerra é assunto importante demais / para ser deixado / nas mãos de generais". Parafraseio: Luta é assunto importante demais para ser deixado nas mãos de vencedores.

Para entrar numa guerra não precisa invadir territórios, queimar plantações, envenenar arroios, matar pessoas. Para ser guerreira ou guerreiro não é necessário vestir armaduras, usar óculos de visão noturna, pistolar-se até os dentes. Ao contrário da propaganda da Brahma, para ser guerreiro não precisa ser louco pela seleção, nem inflar a pança com cerveja.

Guerrear é mais trivial e profundo do que afirmam os compêndios de história ou manuais militares. Esqueça artilharia, cavalaria, força aérea, força naval. Para entrar numa guerra basta ser um usuário do sistema metropolitano de São Paulo. Isso mesmo: basta usar trens e metrô. Não precisa ser no horário do rush, pois nessa cidade toda hora é hora de pico. E entre o vão e a plataforma, de repente, surgirá um trem. Lotado.

Dia a dia, milhões de guerreiros se armam de táticas e estratégias para subir e descer infindáveis escadas-rolantes, marchar em corredores quilométricos, acessar vagões, sacolejar o corpo entre outros corpos. Ouvir mil vezes a voz do condutor explicar que a culpa da parada antes da estação, do atraso da viagem é do usuário que segurou a porta, mesmo quando nenhum usuário está próximo da porta.

Isso é ou não uma guerra? Uma guerra diária. Ou como escreveu um outro poeta, severina. Sem condecorações, sem espólios, sem troféus. Guerra que inspirará apenas os cronistas. Mas há o entusiasmo da vitória quando se chega pontualmente no trabalho ou na escola. O frenesi da vitória quando se chega em casa, e direto para a tv e a cama. Na manhã seguinte, mais um toque de alvorada.

Fernanda Pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

4 comentários:

Rafaella Menezes disse...

Genial, como sempre! Parabéns

CLinck disse...

Doloridamente poético e pontiagudo preciso! Esse é o espírito dessa cidade incivilizada. Ela não foi habitada, foi invadida. Sem receita ou pensamento. Não é um coração q. pulsa nessa cidade; é uma forja de esmagar corpos e almas que determina seus pulsos. Amém todo dia e (parece...) para sempre!

Rose Sztibe disse...

literatura é só grandezas... sempre

Anônimo disse...

maravilhoso, cronista. fa

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