– Diga Margarete, vizinha querida, tudo bem?
– Vamos levando. Cê tá sentido esse cheiro?
– Tô sim. É merda?
– É merda humana, Dosolina, e tá na porta da sua casa!
A vizinhança de Adegesto, cidade no interior de Pataca, é uma calmaria só. Ali, os dias passam modorrentos, o que deixa os poucos visitantes dos centros urbanos como São Zauvino com crises de ansiedade quando passam por lá, mas é costume do cidadão adegestino desfrutar da monotonia com bom humor.
Mãe e dona de casa, a viúva Dosolina é muito querida na cidade. Cuida do lar com dedicação e excelência: lava, passa, cozinha. Depois dos afazeres dedica-se ao deleite crepuscular: novela, guloseimas e filminho. Nada sai de sua rotina; leva a vida com satisfação.
É um hábito esticar as pernas na poltrona que ganhou do filho único e usar o coçador de madeira – uma espécie de “mãozinha” que alcança lugares difíceis nas costas. Além disso, é do seu perfil conversar alto sobre cotidianidades enquanto gesticula muito.
Tudo ia bem em sua vida até o alerta de Margarete. Acreditaram ter sido uma cagada eventual, de alguém apertado e sem banheiro por perto, “um sem educação, um sem modos qualquer”, mas não foi: o inexplicável passou a assolar a porta (e a vida) de Dosolina todos os dias.
– A coisa parece que brota do chão – disse um vizinho encafifado com o mistério.
– Acho que é coisa do sobrenatural – comentou outro.
De um tudo fizeram e nada revelava o autor das cagadas: câmeras, vigília dos amigos, armadilhas e orações. Podiam estar todos atentos e num piscar de olhos o monte disforme exalando seu perfume aparecia soberano. Até recompensa foi oferecida pelo prefeito. Em vão.
Tal qual o cheiro, o assunto infestou a cidade de pouco mais de 4 mil habitantes. O polícia prendia suspeitos, mas a merda sempre aparecia inocentando os acusados. Todo um mercado paralelo foi criado e as apostas no bolão “De quem é a merda?” criou muita expectativa no município.
A visitação pública das fezes, a essa altura, atraia hordas de moradores das cidades vizinhas o que levantou a economia local. Sorveteiros, pipoqueiros e ambulantes gerais acharam um nicho. E, por tabela, vendiam muitos odorizadores, perfumes e afins.
O tradicional carnaval da cidade ganhou a letra “Que merda é essa?” que virou sucesso nacional, interpretada por Chineló, sensação daquele verão. O prefeito, percebendo a situação política favorável, discursou propondo um plebiscito popular para mudar o nome da cidade para Cheirosa.
“Cópias da merda” não original pipocavam em outras portas no intuito de atrair os holofotes. Mas o cheiro e consistência eram específicos, fortes e repugnantes. E estava na porta da cidadã mais ilustre da cidade.
As pencas, repórteres visitavam Adegesto: a merda foi vista nas televisões, falada nas rádios e descrita nos jornais. Dosolina ficou conhecida em todo o país. Supreendeu-se com a notícia da criação por fieis da “Igreja da Merda” cujo padroeiro era “São Merda”.
Um grupo passava o troço no corpo e comercializava a “Merda real” dizendo que era medicinal e curava. Curiosos cientistas estudavam o excremento em laboratório em busca de alguma explicação. Camisetas com o slogan “A merda é nossa” vendiam ao borbotões. Tudo isso foi chateando a boa dona de casa que só queria sua vida pacata de volta.
Seu imóvel, apelidado de “Casa da Merda”, foi tombado pelo patrimônio histórico municipal, fotografado pelo google e ganhou milhares de likes no Facebook e seguidores no Twitter. Um time de futebol, Merda F.C, foi criado com patrocínio de uma empresa de papel higiênico.
Os anos se passaram e a bostança jorrava mais e mais, como uma nascente de rio. E Dosolina? Não se tem mais notícias. Dizem que morreu ou que se mudou. De certo, não aguentou mais ver sua vida esmerdiada. Reza a lenda que em sua última aparição pública, teria dito a um turista que comparou a história a do livro que virou filme O cheiro do ralo.
– Não é do ralo, porra, é do mundo!
Thiago Domenici, jornalista
3 comentários:
Muito bom, Thiago. Muito bom. Teus textos estão cada vez melhores.
Muito bom. Só houve um erro de digitação: faltou o "h" de horda.
Corrigido meu caro ou cara. Abraço, obrigado. Thiago
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