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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A sucursal do inferno

NR apresenta aos seus leitores com exclusividade a abertura do novo romance de Izaías Almada,  A SUCURSAL DO INFERNO, a ser lançado na segunda quinzena de março, em data a definir, pela editora Prumo. 

SÃO PAULO, BRASIL,
ANO DO SENHOR DE 2005

-É ela...

O delegado Montezuma, com sua voz grave, apenas confirmou as suspeitas. Pelo celular informava ao delegado Queiroz, seu superior e diretor da Polícia Federal em São Paulo, a identidade da mulher assaltada junto a uma das margens do lago do Ibirapuera, encontrada bastante ferida.
Ouviu do chefe o que tinha a fazer:

-Quero que dois dos nossos homens acompanhem a vítima até ao Hospital das Clínicas, ajudem no que for preciso e depois me enviem o relatório completo de tudo que for constatado.

A cena, deslocada para aquele recanto bucólico do parque, obrigava aos seus participantes a respirar um ar estranho, de odor pestilento.

Havia qualquer coisa que não se conseguia distinguir muito bem, é verdade, mas que sugeria ou pressupunha, pelo repentino silêncio do vento e dos pássaros madrugadores, terminar em murmúrios cheios de medo, ansiedade e... terror.

O ar, tornado úmido e pesado, alheio a quietude à sua volta, entrecortado aqui e ali de ligeiras sonoridades difusas, distantes, e até pelos primeiros roncos dos ônibus municipais, misturava sem nenhum pudor os cheiros excludentes de pinheiros e eucaliptos com o de peixes mortos a boiarem nas margens do lago.

Não muito distante dali, a maldade insinuava-se por ruas e avenidas da cidade tal qual serpente silenciosa a procura de alimento.

Era apenas outra das primeiras madrugadas de outono na cidade de São Paulo. Tempo em que tímidos recortes de verão, distraídos talvez, mas por vezes persistentes, vão ficando para trás nas irregulares mudanças de estação, assim como alguns dos imprevisíveis aguaceiros que costumam banhar a cidade entre o natal, o carnaval e até mesmo os calmos feriados da semana santa.

Conseguiria a vítima sobreviver?

Indiferentes ao fato, pequenas pontas de vento gelado, finas e cortantes, investiam como aríetes e batiam contra a copa das árvores e das vidraças dos nobres e elegantes edifícios das cercanias do parque, fazendo escorrer pela parte interna e semi aquecida das janelas dos apartamentos pequenas gotas de vapor criadas pelo contraste da temperatura.

Alguém madrugador que naquele instante se arriscasse a abrir as janelas ou persianas dos andares mais altos, em particular as que davam para o parque, teria sua atenção chamada para o piscar das luzes giroscópicas vermelhas e azuis de dois carros, um da Polícia Federal e outro da Polícial Civil, estacionados em frente a uma de suas muitas entradas e que, àquela hora matinal, já recebia os primeiros, corajosos e bem agasalhados andarilhos e ginastas.

O que não se podia descortinar dali, contudo, era o que se passava junto a uma das margens do lago interno, a que se voltava para o lado do monumento aos imigrantes, onde uma ambulância e outras duas viaturas policiais, também com suas luzes coloridas intermitentes, haviam conduzido a equipe da Polícia Federal.

Montezuma chefiava o mais competente e respeitável grupo da Divisão de Repressão a Crimes Financeiros. Sob sua observação atenta, homens trabalhavam, sisudos, alguns até de mau humor...

As primeiras luzes da manhã invadiam o verdejante cenário, amalgamadas em tons alaranjados e lilases, e deixavam entrever por entre os grossos troncos de eucaliptos espalhados pelo parque, dependendo do ponto de vista do observador, os contornos retilíneos do prédio em formato retangular da Assembleia Legislativa estadual ou o arredondado das cabeças de cavalos e de homens em pedra, de Brecheret, que costumavam ilustrar muitos dos vários cartões postais da cidade.

O local onde estava caída a mulher, sua roupa rasgada, os hematomas por várias partes do corpo, a expressão de sofrimento, pareciam confirmar apenas uma hipótese para a polícia: um assalto premeditado, talvez uma vingança...

O delegado Montezuma e sua equipe foram para ali chamados após receberem o comunicado urgente do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil.

Homens que com seus semblantes sérios e mal protegidos para o frio que começava, mas acostumados a esse tipo de situação, faziam o seu trabalho de maneira mecânica, concentrada e pouco falavam entre si.

Sob o movimento nervoso do facho de luz das poderosas lanternas policiais, o delegado Montezuma abaixou-se enquanto colocava luvas de latex. Tinha o rosto contraído e preocupado, como se tentasse adivinhar o que iria acontecer dali para a frente, pois do caminho de casa para o parque já imaginava o que o esperava e deixou de lado qualquer dúvida sobre o ‘osso duro’ que seriam as investigações. Sua equipe e o doutor Queiroz não seriam importunados àquela hora da manhã por um assaltozinho qualquer...

A quem interessaria aquela violência?

Ano de eleições. O Ministério da Justiça iria jogar pesado, pois tinha interesse em que fatos daquela natureza não interferissem na campanha eleitoral que se iniciava. A opinião pública e determinados jornais, rádios e emissoras de televisão iriam se eriçar. Prato cheio, pensou.

Com delicadeza, o delegado Montezuma retirou a mecha de cabelos molhados que escondia parte do rosto de uma bela mulher, já próxima aos quarenta anos de idade. Em seguida, com os dedos indicador e polegar em forma de pinça, pegou o queixo da moça e virou-lhe delicadamente o rosto de um lado para o outro. Ainda respirava com imensa dificuldade.

A água se encarregara de limpar os vestígios de sangue, mas era nítido e expressivo o rictus de horror estampado naquela face. Os olhos, semiabertos, indicavam pelas pupilas dilatadas o pânico de quem enfrentara alguém ou alguma coisa aterrorizante, de força sobrenatural.

-Removam a moça o mais rápido possível para as Clínicas, ordenou Montezuma.

-Nenhum ferimento mais profundo?

-Delegado...

O policial que ajudava a segurar o corpo chamou a atenção de Montezuma. Indicava o que parecia ser um corte nas costas bem na altura do rim esquerdo. Corte superficial e que parecia ter sido feito propositalmente em forma de cruz. Ao redor do pescoço e nas costas, outros pequenos cortes e a presença de vergões arroxeados.

-Como descobriram a mulher?, perguntou o delegado da Federal para o da Civil.

-Um desses madrugadores que correm por aqui avistou as pernas por trás desses arbustos e ligou para o 190.

-Ele viu algum suspeito?

-Não, mas se identificou se precisarmos dele.

Com algum esforço, o delegado Montezuma conseguia disfarçar o desconforto e a preocupação que sentia, enquanto observava os paramédicos que colocavam a mulher na ambulância.

O silêncio entre os policiais se fez tão ou mais gelado quanto o da manhã que nascia.

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