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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A cabeça de Juarez

Juarez se ajoelhou diante da imagem da Virgem, agarrou o crucifixo da correntinha de ouro com as duas mãos e rezou com tanto fervor e tão alto que chamou a atenção dos outros jogadores, que já haviam começado o aquecimento. Terminada a oração e ainda com os olhos fechados, o goleiro sentiu um arrepio no corpo todo e pressentiu que aquela partida não seria uma mais.

Era a final do campeonato e o Fagulha Esporte Clube precisava vencer para levantar a troféu. Um empate daria o título de campeão amador ao Bandeira Football Club pela melhor campanha durante a competição.

Metade da cidade estava no estádio municipal naquele domingo, numa festa democrática: gente rica e gente pobre, crianças e velhos, autoridades e malandros, putas e travestis.

A banda municipal executou o hino, a rainha da cidade entregou uma placa de homenagem ao empresário local (que bancava o torneio) e a bola por fim começou a rolar.

Como era de se esperar, o Bandeira – muito superior tecnicamente – dominou a partida desde o início. Merreca, o lateral-direito do Fagulha, sofria com os dribles do Esquerdinha, que chegava à linha de fundo como e quando queria, e com tempo para levantar a cabeça e centrar na medida para Bobô, o perigoso camisa 9 colorado.

O centroavante teve quatro chances claras só no primeiro tempo, mas Juarez salvou duas cabeçadas no melhor estilo Gordon Banks, defendeu um chute à queima roupa e, quando foi vencido, viu a trave impedir que o voleio do atacante estufasse a rede.

No intervalo, Juarez rezou de novo, agradeceu à Virgem pela virgindade de sua meta e pediu um golzinho para que o inédito título viesse.

No começo do segundo tempo, Breguete recebeu o segundo cartão amarelo depois de acertar Esquerdinha com um pontapé nas partes baixas.

Trambique, o treinador do time celeste, teve que tirar um atacante para reforçar a defesa. O resultado foi que a bola era sempre do adversário e estava sempre na área de Juarez, que defendeu com o pé, com a mão, com a cabeça (sem querer, é verdade!) e, principalmente, com as orações.

Aos 42 do segundo tempo, o beque Negresco, que passara o jogo inteiro distribuindo cotoveladas e tesouradas, também recebeu o segundo amarelo, deixando o Fagulha com nove em campo.

O empate sem gols permanecia por milagre e a comissão do Bandeira já se mexia no banco de reserva preparando a comemoração. O prefeito da cidade já havia deixado a tribuna rumo ao campo para entregar a taça, pela quinta vez seguida, à equipe colorada, mas ainda havia jogo.

Foi aos 47 do segundo tempo, último lance da partida, que Juarez enxergou seu momento de glória. A bola era do Bandeira, mas o volante atrasou mal para o lateral, que por sua vez procurava pela noiva na arquibancada e não alcançou a pelota.

Escanteio para o Fagulha, o primeiro do jogo. Juarez olhou para o banco de reservas e gritou para o técnico: Posso ir? “Vai, vai. Corre!”, respondeu o treinador.

O camisa 1 saiu em disparada, cruzou o campo todo e chegou na área adversária no exato momento em que Cabral cobrou o corner. A bola veio alta, girando e sua trajetória era uma parábola perfeita que cruzaria a marca do pênalti na altura exata para o arremate de cabeça de Juarez.

O goleiro deu três passos, ganhou impulso e saltou como jamais havia feito na vida, como se asas tivesse e anjo fosse. Viu a bola chegar à sua testa, sentiu um impacto e as luzes do mundo se apagaram.

O goleiro rival saíra determinado a cortar a jogada e acertou com os punhos fechados um pouco da bola e um muito da cabeça de Juarez, que foi levado inconsciente ao hospital e não viu a confusão que se armou em campo.

Cercado, o juiz recebeu chutes e tapas por não ter marcado o pênalti claríssimo. Os jogadores do Bandeira saíram em sua defesa e – com o perdão da palavra – o pau comeu, em campo e nas arquibancadas.

O troféu desapareceu, o prefeito apanhou sem saber de quem e por quê e diferenças familiares e ideológicas foram resolvidas na base da bofetada naquela tarde.

Já era madrugada quando Juarez despertou no hospital e o primeiro que viu foi a silhueta da rechonchuda enfermeira, o que lhe fez pensar que ela era a Virgem e ele estava morto.

Tentou se levantar, mas a mulher vestida de branco, preocupada com o soro que alimentava o paciente, colocou carinhosamente a mão no seu peito e disse para que ficasse tranquilo. Foi quando Juarez lhe agarrou a mão e com um fio de voz perguntou: “Foi gol, não foi, minha Santa”.

Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.

Um comentário:

Fernando Evangelista disse...

Ricardo,
Bravo! Bravo! Bravo! Este texto é um verdadeiro gol de placa.

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