O mandato de Mandela ia pela metade quando participei de um grande evento internacional em Salzburg, Áustria (num lugar onde eu me sentia dentro de “A noviça rebelde”, pronta pra encontrar Julie Andrews cantando no jardim). Estavam ali umas trezentas pessoas, de muitos países, sendo eu a única brasileira, para discutir estratégias de desenvolvimento durante cinco dias.
Como acontece frequentemente em reuniões desse tipo, as sessões de trabalho eram longas e burocráticas. Em bom brasileiro, um tédio. Era nos intervalos que as conversas e intercâmbios de fato aconteciam, e onde melhor se cumpriam os objetivos do seminário – o que também é muito frequente. É que as pessoas fazem muito enquanto conversam, mas acham que trabalhar “a sério” é colocar todo mundo dentro de uma sala escura e refrigerada e despejar sobre elas um falatório do qual praticamente nada se aproveita de verdade, e pouco fica registrado na memória individual. Mas aquele papo que rola no corredor, no almoço, no jardim, esse move as engrenagens.
O que mais me impressiona é a negação persistente do racismo, enquanto ele é incessantemente praticado, assim como a disseminada incapacidade de entender que a superação da discriminação e da desigualdade é boa para todos, e de maneira nenhuma implica favores descabidos. Aliás, a igualdade está na lei, o que mais custa é trazê-la para a vida.Bom, então, as refeições eram todas feitas num grande salão, em mesas de doze lugares. Num determinado jantar, sentaram-se ao meu lado dois sul-africanos brancos. Como era de se esperar, Mandela e a extinção do odioso sistema do “apartheid” viraram o centro da conversa, até que alguém lhes fez a pergunta crucial: “como o seu país vai fazer pra superar o racismo?” De forma quase coordenada, eles responderam: “há vários caminhos e modelos, mas nós queremos que a referência seja o Brasil, onde se desenvolveu uma sociedade na qual não existem diferenças raciais”.
Eu quase caí da cadeira. Virei-me para o grupo e, declarando-me brasileira, comecei a falar sobre a extensão e profundidade da discriminação em nosso país, de como vinha sendo velada e negada desde sempre, mas que finalmente, poucos meses antes, fora pela primeira vez nomeada ao mais alto nível, sem eufemismos e sem panos quentes, e como era importante que a sociedade brasileira acordasse para o assunto e realmente começasse a agir no sentido de eliminá-la. Falei da luta incansável dos movimentos negros organizados e das dificuldades de combater um inimigo “inexistente”. E que, por favor, a África do Sul buscasse outro modelo, porque essa “democracia racial” era uma mentira completa.
Quando fiz uma pausa, todos me olhavam como se eu fosse um ET. Estavam chocados, mas curiosos, e começaram a fazer perguntas. A conversa se estendeu por mais umas duas horas.
Passaram-se vários anos desde esse episódio. Muita coisa já mudou, graças principalmente aos movimentos organizados e a iniciativas governamentais, sempre enfrentando muitas dificuldades. Aqui, não foi preciso um “apartheid” na lei para que os lugares dos negros fossem muito bem demarcados. O débito brasileiro nesta área ainda é enorme, mas poucos se dispõem a pagar o preço.
O que mais me impressiona é a negação persistente do racismo, enquanto ele é incessantemente praticado, assim como a disseminada incapacidade de entender que a superação da discriminação e da desigualdade é boa para todos, e de maneira nenhuma implica favores descabidos. Aliás, a igualdade está na lei, o que mais custa é trazê-la para a vida.
Esta não pode ser uma luta restrita aos negros ou outros grupos discriminados. É indispensável o engajamento dos brancos e de todas as pessoas que prezam a democracia e a igualdade como valores essenciais. O multiculturalismo é uma das características brasileiras mais apreciadas em todo o mundo. Nos últimos anos, estamos fazendo bonito em outras áreas também, e atraindo muita admiração e respeito.
Seríamos definitivamente irresistíveis se pudéssemos exibir, com muito orgulho, uma verdadeira democracia racial. Não aquela que é sem nunca ter sido, e que, se os sul-africanos tivessem copiado (será que realmente o cogitaram?), hoje teriam algo bem parecido com o que havia antes, mas sem nome.
*Este texto contou com a valiosa contribuição de Ana Carolina Querino.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.
5 comentários:
Silencio interno. É isso, a verdade , a realidade e o querer mudar precisam vir para o dia-a-dia.
bjos, bjos
O que nunca houve no Brasil pós escravidão foi um racismo explicitado até pela lei, como na África do Sul ou em partes dos Estados Unidos, também pela dificuldade de se distinguir (ou apartar) quem é negro e quem é branco, devido à nossa profunda miscigenação.
A ironia é que foi justamente nesses dois países "apartados" que surgiram os grandes movimentos anti-racismo e pelos direitos dos negros, que deram uma visibilidade mundial aos então discriminados. Hoje, a questão racial nestes dois países está muito mais bem resolvida (claro que não completamente) do que no nosso, onde se identificar como negro ainda é um grande desafio pessoal.
Crônica muito bem elaborada,Júnia, atingindo os pontos vitais .Embora haja legislação séria sobre o assunto , temos de lamentar que "na prática a teoria é diferente".Mas sua luta não tem sido em vão. Conheço o que você tem feito pelos negros , numa atitude invejável e desafiadora. Parabéns.
A clareza das colocações não deixa dúvidas.
MUMMY DIRCIM
Cadê a tendinha, Mãe Júnia do Planalto Central? Continuo passada com tuas adivinhações. Namoro um gaúcho branco de ver as veias. Tenho sido alvo de comentários racistas incessantes nas duas últimas semanas, e tenho cogitado seriamente a hipótese de chamar a Carol para me dar uns conselhos. ONU Mulheres e seu contínuo desvelar. Sempre fui vítima de comentários racistas, em toda a minha vida. Mas as pessoas acham que falar do meu cabelo ou da minha pele da forma depreciativa que falam é "normal", "não é nada demais", "é compreensível". Sempre aturei calada, quase convencida pela sociedade de que eu é que era muito cismada por ficar puta de ouvir aquilo tudo.
Será que você é telepata e lê a minha mente? :)
beijo, Gisele
Bravo!
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