por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
A notícia está num jornal de hoje (março de 2013!): foi realizado o primeiro casamento civil no Líbano, de um casal decidido a desafiar as lideranças e as práticas religiosas e utilizar um dispositivo legal que já existia, mas ninguém ainda havia tido a coragem de aplicar. O casamento aconteceu há quase um ano, mas só agora veio a público, provocando, mesmo tardiamente, a ira dos muçulmanos radicais, que exigem a manutenção do controle religioso sobre a vida civil.
Posso imaginar a reação dos meus esclarecidos leitores, chocados com o atraso nos costumes observado naquele país e com a ingerência da religião na vida privada das pessoas. E aliviados por Deodoro da Fonseca ter estabelecido o casamento civil heterossexual por aqui em 1890, tão logo nos tornamos uma república.
Lamento estragar seu alívio. Se você ainda não percebeu, está em curso no Brasil – e, infelizmente, não só aqui – uma ofensiva religiosa conservadora fundamentalista cujo principal objetivo é ocupar o cenário político e institucional com pessoas que promovam suas ideias e sua visão de mundo, e imponham seus valores a toda a sociedade. Ou você acha que Marco Feliciano brotou da terra e se fez sozinho? Santa ingenuidade!
Não me refiro apenas aos evangélicos fundamentalistas, que têm estado mais em evidência, mas a grupos religiosos ultraconservadores em geral. No dia-a-dia, eles não são grandes amigos uns dos outros; disputam fiéis, atacam-se mutuamente, competem por espaço na mídia e na política, criam cisma sobre cisma, mas quando se trata de sustentar publicamente posições de força em defesa dos temas que lhes são caros, unem-se como monólitos e passam todos juntos, derrubando tudo o que veem pela frente.
O perigo maior é que, apesar do discurso de amor, compaixão etc., essas pessoas nutrem um profundo desprezo pelo outro, por quem crê de forma diferente da sua, ou descrê. Na verdade, em seu pensamento raso, muitas delas acham que estão agindo movidas pelo amor e pela compaixão, porque o que realmente importa para o mundo, para todas as pessoas, que vai salvá-las definitivamente da maldição eterna – que é o que elas mais temem, no fim das contas – é a sua própria crença, a única, a definitiva, completa e inquestionável. E, vamos combinar, contra verdades definitivas não há argumentos.
Sonham com um país santificado, livre de feministas, gays e afins, famílias não tradicionais, negros e índios inconformados, humanistas, arte profana, querem libertar o Brasil da imoralidade e da tirania dos direitos, inaugurando uma sociedade voltada para o que é certo, justo e conforme com o que interpretam como a vontade do seu deus, da qual são porta-vozes. E que deve ser imposta a todos e todas, sejam lá quais forem as convicções e escolhas individuais. Contam com o apoio tácito de muita gente que, embora não necessariamente partilhe das mesmas crenças, acredita que um pouco mais de controle e menos direitos vai ser bom pra todo mundo. Não sabem, não têm ideia de onde isso pode parar.
Resumindo, trata-se de um projeto de poder, bem humano e bem terreno, com objetivos ambiciosos, que está avançando a olhos vistos. Mais do que necessário, considero essencial detê-lo, em nome de tudo o que me permite pensar, escolher e decidir, e que me obriga a respeitar a vida alheia.
Hesitei muito em me manifestar sobre este assunto, em respeito à minha origem pentecostal e às muitas pessoas desse meio por quem tenho toda a consideração, começando pela minha família. Concluí que deveria fazê-lo, e que só se incomodará quem se identificar com a intolerância, o obscurantismo e o atraso.
* Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto
6 comentários:
De início, agradecido o status de esclarecido leitor. O Marco Feliciano, caso seja de fato uma ofensiva conservadora, não se sustentará. No jornal de hoje (Portal Terra Notícias), está exigindo apoio do PT e ameaçando a presidenta com os votos dos evangélicos. O que realmente incomoda na história é que estamos ampliando o acesso à educação, atingindo uma camada que jamais pensou em chegar tão longe e o resultado tem sido esse: a vitória parcial do atraso. Não compreendo.
Abraços,
Carlos.
Faço questão de acrescentar um esclarecimento que me foi feito por uma amiga libanesa: não são só os muçulmanos que estão reagindo contra o casamento civil no Líbano, mas religiosos em geral, inclusive cristãos de diferentes credos. Peço desculpas pela gafe.
Júnia Puglia
Contra fundamentalismo, contra hipocrisia, contra sectarismo, contra esse mocinho que está brincando de Deus tem mesmo de haver a coragem e a lucidez de uma cronista como vc, Ju. Abs solidários, Terê
Concordo plenamente. E, sendo petulante, digo:
Não há um só deus sequer, das milhares de religiões professas neste planeta, que concorde com o que está exposto e imposto. Isto é coisa humana do mais baixo calão de poder. Márcia Ester
O que está acontecendo é um verdadeiro insulto às mentes bem formadas.Mentira,hipocrisia,imposição de conceitos, "compra e venda de almas no altar do cartão de crédito"valem como entrada para o show dos impostores sobre a ignorância.
Haja esclarecimento e piedade cristã sobre o preço a ser pago.
Mummy Dircim
Demorei a ler, mas valeu a pena. Concordo com tudo - inclusive com os comentários da nossa amiga Tânia. OBRIGADA! FF
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.