por Ricardo Sangiovanni*
Se o que estivesse em jogo aqui fosse bater o ponto, cumprir o prazo e pronto, o certo era ter escrito isso ontem. Acontece que, se tivesse escrito ontem, teria cumprido o prazo, mas faltado com o propósito da coisa, pois afinal a crônica não teria dado a mínima liga.
É que havia passado a semana na intenção de escrever sobre o que diz um mitólogo, o Mircea Eliade, sobre esse negócio de arte: que na arte ele enxerga uma espécie de destruição, pelo artista, do mundo, esse aqui real e existente, com vistas a criar um outro, fresco e renovado das misérias do cotidiano. E que por isso, nota ainda o Eliade, haveria certa semelhança entre a arte e um traço habitual de quase todas as mitologias – o Fim do Mundo: uma destruição completa do orbe, prevista de tempos em tempos, a fim de limpá-lo de todas as máculas, de todos os jugos, de todos os vícios acumulados pelas más ações dos homens, como era no princípio do mundo.
Mas escrever-lhes disso antes antes do sábado à noite, antes de ver Ney Matogrosso cantar, não faria maior sentido – é que receio que não lhes chegasse a falar ao espírito. Afinal, seria todo um filosofê, mas me faltaria um exemplo forte com que pudesse construir boa retórica – e a falta de um exemplo da rua é a pior desgraça que pode acontecer ao cronista mundano.
Pois Ney Matogrosso, senhoras e senhores, subiu no palco do Teatro Castro Alves, do alto de um saltão plataforma e de seus 71 anos, remelexando e correndo e rastejando feito um lagarto, com uma vitalidade que, confesso, anda-me faltando aos 29.
Cantou aos 71 anos, como anda-nos faltando cantar aos vinte e poucos, as misérias desse mundo urbano, esse que a cada dia se nos mostra mais intolerante, mais intolerável. Cantou, sem rodeios, o que é evidente: o caos do trânsito, a incomunicação burra dos smartphones, o desamor das noitadas capitalinas, a loucura que é nossa vida breve, vivida na mais redonda ignorância de tudo o que nos possa ser ancestral.
Ney Matogrosso cantou, com uma voz ainda impecável e uma admirável presença não apenas corporal, mas de espírito, o que o mitólogo Eliade chamaria de “escatologia” deste mundo: pôs em evidência tudo que de terrível, de blasfemo, vivemos; buscando porém não evidenciar o caos pelo caos, mas um caos prenhe do novo, o caos do “Astronauta Lírico”, leve e pensativo, ávido por inventar uma cidade magnífica.
Sem Ney Matogrosso, senhoras e senhores, isto aqui que achei tão bonito na página 69 do livro de Eliade talvez não lhes dissesse muito:
Seria interessante estudar o processo da revalorização do mito do Fim do Mundo na arte contemporânea. Constataríamos que os artistas, longe de serem os neuróticos de que algumas vezes se fala, são, ao contrário, psiquicamente mais sãos do que muitos homens modernos. Eles compreenderam que um verdadeiro reinício não pode ter lugar senão após um verdadeiro Fim. E, primeiros entre os modernos, os artistas puseram-se a destruir realmente o Mundo deles, a fim de recriar um Universo artístico no qual o homem possa simultaneamente existir, contemplar e sonhar.A fala cabe aos verdadeiros artistas, senhoras e senhores: aqueles a quem, como Ney Matogrosso, não interessa somente bater o ponto, cumprir o prazo, embolsar a grana e pronto, a despeito de qual seja o propósito da coisa. (Artistas, aliás, que certamente ainda continuam surgindo, mas que nós, órfãos cada vez mais de bons críticos para nos ajudar a descobri-los, vamos deixando, bestamente, passar despercebidos.)
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
4 comentários:
Que crônica da porra!Fiquei emocionado!
Parabéns!
Que bom que gostou, Itárcio! Grande abraço!
Belíssimo texto, uma "leitura" inusitada e absolutamente lúcida desse brilhante Ney de "Atento aos Sinais". Um artista que perturba, subverte, desestrutura tudo que o poderíamos pensar (inclusive dele) e nos devolve c/ sua música um mundo renovado, de possibilidades impensadas.
Gostei de tudo que vc escreveu, mas principalmente da sua ótica sobre a reflexão que esse novo repertório de Ney lança, do caos urbano ao paradoxo da impossibilidade de comunicação num mundo cada vez mais conectado.
Exato, Gabriel, fui por esse caminho mesmo :) Obrigado, abração
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