Alithea, esposa de James Woodcock, morreu em 26 de agosto de 1850. Partiu jovem, com 28 anos apenas.
Dali a quinze anos, em 1865, morreria também a filha do casal, Elizabeth, também num agosto – dia 12 – e também jovem – com 24 anos.
Mais dez anos passariam até que morresse Benjamin, irmão de Elizabeth, filho de Alithea e James Woodcock, em 14 de abril de 1875. Jovem ele também: tinha 24 anos.
De tudo isso fiquei sabendo no dia em que visitei o cemitério abandonado de Sheffield, uma simpática e cinzenta cidade do norte da Inglaterra onde pude viver por alguns meses. Terra de que tenho saudades, muito embora não devesse – afinal em Sheffield sofri com o frio cortante e a renitente garoa, comi mal, bebi, fumei e trabalhei muito, e não vivi nenhum amor. Mas, enfim, saudade é essa coisa, a gente não explica.
Talvez por ter sido um período em que me sentisse criativo e imensamente poeta – aliás, foi lá que comecei com este bendito NR. A lápide da família Woodcock e as de outras eu fotografei para caso um dia houvesse precisão de pôr nome verossímil n’algum personagem literário que porventura viesse a criar.
Acontece que desde então já mais de dois anos se passaram, e nenhuma história de personagem nenhum me surgiu – nem sei se um dia surgirá – , de maneira que eis-me hoje aqui revelando-lhes os truques de minha vida literária sem jamais ter tido uma.
Mas também, olha, isso de vida literária virou uma franca bobagem, porque requer mais mesmo é que o denominado escritor acumule pilhas de filigraninhas inúteis sobre livros e literatos, e que viva destilando menções sobre eles, e barroquiando a palavra fácil, e dando entrevistas para explicar seus processos criativos e influências e afins; enfim: requer bem mais vestir-se de toda uma parafernália pop, bem menos tratar de viver e pesquisar e padecer e lapidar até chegar a algo que preste que mereça ganhar forma de livro.
De sorte que, ao tomar a família Woodcock por mero estoque onomástico, por pura ansiedade literária, eludi a pergunta fundamental, da qual talvez parisse alguma literatura: por que será que a mulher e os filhos de Woodcock morreram todos tão cedo? Terão sido vítimas do trabalho extenuante nas fábricas insalubres da região? Ou terão morrido cada um por um motivo: Alithea de complicações do parto de Benjamin; Elizabeth pela saúde frágil que passou a ter desde que precisou trabalhar para suprir a falta da mãe; Benjamin porque, na falta da irmã e da mãe, deprimiu-se e entregou-se ao álcool e ao frio? Ou, pior: terão sido progressivamente eliminados pelo próprio Woodcock? Ou, ainda pior, por sua segunda esposa, Hannah Rodwell, ou por ambos mancomunados, uma vez que esses dois só morreriam (como informa também a lápide) muitos anos depois, já próximos de completar 80 anos?
Cada uma dessas perguntas daria início a uma bela história inventada, de fato. Mas, ainda assim, talvez nenhuma delas fosse a pergunta correta. Talvez mãe e filhos tenham morrido vítimas de alguma maldição conhecida em toda a cidade na época, feito uma maldição que já se passou na cidade de Poções – Bahia, entre final dos anos 1960 e início dos 70. Foi uma doença congênita, cujo nome agora ignoro, que levou cedo três irmãs, aliás as moças mais bonitas da cidade: Vaneide, aos 23, Rosa Amélia, aos 22, e Vera Lícia aos 26 anos.
Assim contou-me meu pai, em uma visita que fizemos ao cemitério da cidade certa feita. Se fosse para eu ser escritor, talvez já tivesse transformado essa história em algum conto, ou com ela dado início a algum romance. Mas não, segue me interessando mais ir amealhando semelhanças, miudezas que vou guardando num baú infinito de lembranças soltas e trocos de pinga, coisas que talvez ainda volte a encontrar no futuro, talvez não.
Aliás, naquela visita, fixei-me, mais do que na história das moças, no epitáfio escrito nas lápides delas: Saudades Eterna. Reparando, vi que é o que está escrito não só nas lápides delas, mas em quase todas as lápides do cemitério: Saudades Eterna. Estranho: achava que o certo fossem saudades eternas. Ou saudade eterna. Enfim, não importa, de qualquer jeito é saudade, essa coisa que a gente não explica.
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*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
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