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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Descosido


por Júnia Puglia*

Tem uma caixa de retalhos aqui dentro, todos querendo entrar nesta breve crônica. Vou tentar.

Há poucos dias, uma notícia me deu calafrios. Em algumas cidades suíças, os governos locais estão implementando normas de convivência que vetam o acesso de estrangeiros candidatos à condição de asilados (quase todos oriundos de países pobres) a certos lugares, como escolas e clubes. Tais normas são referendadas pela população, como determina a lei. O nome disto é “apartheid”, que significa “separação” em africâner, língua falada pelos brancos na África do Sul, país onde o regime segregacionista foi banido em 1994.

Muitos são os que acreditam na legitimidade da separação, e a desejam. Conviver com a diferença chega a ser uma ofensa para aqueles que se sentem mais gente que os outros. Não me esqueço de um pastor evangélico brasileiro branco, que conheci no final dos anos setenta, e que voltava de trabalhar por dois anos na África do Sul como missionário. Justificava o apartheid com toda convicção, pois “aqueles negros não sabem nem usar a privada; pra eles, um coqueiro serve muito bem”. Eu estava dando os primeiros passos no mundo adulto. Foi um choque e tanto.

O tempo passou, e a vida me deu um marido carioca, filho de pai baiano, por sua vez filho da querida Vó Izabel, baiana negra e miúda, que conheci já passada dos noventa anos. Filha de escravos, nasceu livre no papel, mas não conheceu outra vida senão a do trabalho e da dureza, como empregada doméstica e lavadeira desde sempre.

Nosso filho andava pelos nove anos. Um menino que gostava de conversar e de pensar, e que bem cedo revelava o historiador que viria a ser. Numa aula de História do Brasil, o tema da escravidão levou-o a uma conexão perturbadora, que culminou na pergunta: mãe, você acha que a família da Vó Izabel pode ter sido escrava nas terras dos nossos antepassados paulistas? Respondi que não, porque viveram muito distantes geograficamente. Ele ficou aliviado, mas pouco.

Lembrei-me disto quando vi uma série de fotos de escravos brasileiros rodando na internet, um raro registro visual daquela gente que não era considerada bem gente. São algumas dezenas de imagens, mas não consegui passar da décima, tamanho o incômodo que senti com as expressões, principalmente das mulheres, por mais belas que fossem, por mais enfeitadas que estivessem.

Com essas coisas rodando na cabeça, meu alento foi um artigo de jornal sobre os pescadores da italiana Lampedusa. Todos os dias, eles arrancam das garras do Mediterrâneo náufragos malis, líbios e eritreus, que se jogam ao mar em barcos caquéticos, tentando desesperadamente escapar da fome e da miséria e encontrar um futuro decente na tal de Europa. Aquela mesma onde o fermento da xenofobia e do ódio racial tem inflado na mesma medida do encurtamento do dinheiro e dos postos de trabalho. Não importa, dizem os pescadores, não podemos deixá-los morrer.

Mal costurado? É que os retalhos não se deixaram manusear o suficiente.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Philippe Loubat

3 comentários:

Carlos Augusto Medeiros disse...

O mais curioso dessa história, Júnia, é que não há modelo de crescimento que se sustente sem a alteridade como eixo. Repare que esse discursos enfadonhos, de povos construídos à base do sofrido trabalho de outros povos; usurpadores das culturas locais; grandes ofertadores de vagas de serviços de qualidade inferior e garantias inexistentes; tudo isso, travestido de (re)leitura política serve para justificar a essência da nação. Sou feliz sendo brasileiro, com todos os nossos problemas. Só não entende o que é o convívio com a diferença quem não conhece São Paulo: lá aprendemos na carne a (com)viver.

Elezer Jr. disse...

Junia,

Permita-me comentar a parte inicial desta sua crônica, por estar justamente na condição de estrangeiro vivendo na Suíça.

Não sei onde você leu a notícia que deu calafrios, mas ela não reflete a realidade - seja por falta de compreensão da realidade suíça, seja por interesses político/sociais escusos, por parte do veículo onde a notícia foi publicada.

A população da Suíça tem mais de 25% de estrangeiros vivendo legalmente no país, para sorte dos suíços, cuja economia depende tremendamente dessa mão de obra, que cobre todos os graus de especialização. Sem essa população de estrangeiros, a economia do país entraria em colapso - e o povo suíço sabe perfeitamente disso, e convive com os estrangeiros de forma no mínimo pacífica, senão calorosa.

Não quero dizer que não haja discriminação na Suíça - mas dizer que estão implementando um apartheid passa muito longe da realidade. O movimento do povo suíço (acostumados que estão a uma democracia direta) pretende, isto sim, evitar a fixação de estrangeiros ilegais no país, coisa que constitui uma ameaça séria a um país que tem hoje a quarta maior proporção de refugiados por habitante, atrás apenas de Malta, Suécia e Luxemburgo.

Finalmente, por tudo que eu já li, ouvi e vi por aqui, em que pesem essas limitações (ou tentativas de), os candidatos a asilo e os asilados deste país recebem apoio do governo que certamente lhes garante condições melhores do que se ouve falar, por exemplo, na Itália, só para citar um exemplo - e tudo referendado pela mesma população, como manda a lei. O que não diminui o sofrimento geral de quem tem que buscar asilo em qualquer parte do mundo.

Anônimo disse...

Meu Deus, reedição do pastor protestante? FF

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