por Celso Vicenzi*
Não me queixo dos interlocutores nas redes sociais. Tenho compartilhado artigos e análises pessoais e, principalmente, de autores que julgo importantes, para uma boa reflexão sobre o país, seu passado, seu presente e seu futuro. Igualmente em relação ao planeta. De um modo geral, meus interlocutores – homens e mulheres – são educados e vários deles discordam de meus pontos de vista, como, por exemplo, no caso do chamado “mensalão”. No entanto, há uma parcela de pessoas que mostra-se particularmente incomodada, às vezes até irritada em estender o debate. São pessoas que gostam de pôr um ponto final à História. Como se fosse possível e, mais que isso, desejável.
O vigor de uma democracia se faz justamente pelo intenso debate e compreensão dos fatos, o que deveria ir muito além dos clichês e respostas prontas, fruto de muitos anos de uma educação pouco questionadora e uma mídia que reforça certezas habilmente construídas. A obrigação de respeitar decisões legítimas no âmbito de todos os poderes não significa silenciar sobre os motivos dessas decisões. Pode ser legítima a promulgação de uma lei, mas seus benefícios ou prejuízos são passíveis de análise e comentário. Ou até de repúdio, quando injustos.
Somos doutrinados para obedecer, mais do que questionar. Somos ensinados a executar tarefas e a não perguntar. Somos instruídos para ocupar cargos na estrutura social e fazer o mínimo de indagações. Mais ou menos assim: "Pegue o seu salário, divirta-se e não queira contestar o que está errado." Não olhe para trás, nem para o lado. As injustiças sociais, que se multiplicam, devem ter outras razões que não aquelas que fizeram de você, de nós, privilegiados.
Num país que, apesar de estar entre as dez maiores economias do mundo, possui uma das sociedades mais desiguais, como não discutir as decisões de suas mais altas cortes, sejam elas do Judiciário, do Executivo ou do Parlamento? Nenhuma injustiça social é obra do acaso. Depende de decisões que envolvem pessoas que ocupam postos em vários escalões das organizações empresariais, políticas, religiosas, jurídicas, sindicais, educacionais – o leque é amplo e de peso variado no grau de influência que exerce nos destinos de uma nação.
O Brasil das capitanias hereditárias ainda tem marcas muito presentes nas esferas de poder do país. Leonardo Boff, em recente artigo, identifica intenções veladas e nunca declaradas no tão espetacular julgamento do “mensalão”. Os erros do PT não são pequenos, mas todo esse furor midiático não tem como alvo apenas os defeitos do partido, mas justamente os avanços que, apesar das alianças conservadoras, o governo conseguiu levar adiante, beneficiando milhões de brasileiros. Boff menciona uma elite conservadora, “sempre mais interessada em defender privilégios do que em garantir direitos para todos”.
Aconteceram casos semelhantes ao “mensalão” antes e durante o processo que ocupou a mídia como “nunca antes na história desse país” – para usar de uma ironia. Elegê-lo como “o maior caso de corrupção da história do país" é desconhecer a história, o país e brincar com a inteligência do povo, ou usar de má-fé, o que a mídia tem feito, aliás, sem nenhum pudor. Para não multiplicar exemplos, há o caso noticiado por um jornal de circulação nacional que cita parlamentares que teriam recebido dinheiro para aprovar a emenda da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. E, em pleno julgamento do “mensalão”, estoura o escândalo dos trens em São Paulo, que envolve a gestão de prefeitos e governadores do PSDB.
Mencionar esses e muitos outros casos é tentar desviar o foco do “mensalão”? Não! É simplesmente analisar e tentar compreender o que faz com que a mídia e o STF, particularmente neste caso, operem de maneira tão diversa do que costumam reservar para outros casos semelhantes ou ainda piores. O que se discute não é apenas uma sentença e, sim, o funcionamento das instituições e o modelo de país: conservador, elitizado, racista, preconceituoso, desigual, injusto e excludente. Entre outras razões, exatamente porque suas principais instâncias de poder também funcionam assim. Onde quase tudo costuma ter dois pesos e duas medidas, como muito bem sabem os mais pobres.
A versão oficial da história é sempre a dos vencedores, sim. Mas impérios, algum dia, também caem. Não há como pôr um ponto final à História. Ela será permanentemente reescrita.
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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
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