.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Icu e o menino que furtava livros

por Cidinha da Silva

Em A menina que roubava livros, a mãe de Liesel Meninger, personagem principal, era comunista e sofria perseguição nazista. Seus filhos, como ela, várias vezes escaparam da morte no período de 1939 a 1943. A violência se alastrava como erva daninha por todos os cantos da Alemanha e a morte, perplexa diante da degradação humana, resolveu narrar a história de Liesel que driblava seu cheiro (da morte) exalado das valas comuns, dos corpos de homossexuais, descapacitados, comunistas, judeus e todos os adversários do nazismo, incinerados nas câmaras de gás.

A morte, então, acompanha a trajetória dos livros que escapam das grandes fogueiras públicas promovidas pelo Estado e como Liesel os resgata, assim como rouba outros de bibliotecas e passa a alimentar-se do perfume de vida difundido pelas mentiras deliciosas e encantadoras contadas nas obras literárias.

No Brasil, 71 anos depois da 2ª Guerra, Alex Santana não tem a mesma sorte de Liesel e é preso ao furtar três livros em uma livraria de shopping soteropolitano. Segundo declarações prestadas na delegacia, foram três livros naquele momento, mas o menino já havia furtado outros sete. Todos para estudos.

O texto da notícia enfatiza o gênero dos três livros furtados, ficção. Fica no ar o sub-texto, não eram livros para estudos? Icu, pesarosa, testemunha do desfalecimento do desejo de voar do menino, pergunta: quem decretou que só se estuda em manual ou livro didático? Se alguém rouba um pão francês é porque tem fome, mas se rouba um chocolate ou sorvete é porque tem febre de riqueza e luxo? E Icu mesma responde: é que no furto praticado pelos pequenos, o sonho e a delícia não são permitidos.

Icu, testemunha da luta de Alex pela sobrevivência, resolve defendê-lo na justiça, pois que, sem recursos para pagar fiança, mandaram o menino para o presídio da Mata Escura, onde os dias não amanhecem e as noites de lua desconhecem a ternura.

Diz Icu na peça de defesa: todos os viventes um dia serão meus, é a certeza mais perene da vida. Mas de alguns, como Alex, a vida, minha opositora, me aproxima pelas iniquidades impostas ao caminho. Essa gente integra coletivos de pessoas expostas à precariedade, ao racismo, aos abusos, à violência. Gente que sobrevive por teimosia. Deles costumo gostar e quero que vivam, mas a vida insiste em que eu os leve.

A vida tentou me convencer a levar Alex e tantos meninos iguais a ele, quando as mães não conseguiram fazer pré-natal, quando nasceram e não foram pesados e cuidados nos postos de saúde como todas as crianças deveriam ser, quando a família não pôde alimentá-los como mereciam, quando as doenças típicas da miséria os acometeram, quando escaparam das chacinas, porque minha irmã, a sorte, fez com que o morticínio ocorresse minutos antes da passagem deles pelo local. A vida quer entregá-los a mim, na bandeja, como prato frio e amargo. Eu me recuso a comer. Eles driblam a vida como grandes jogadores que aprendem a ser e conseguem me evitar.

Meu cliente, senhoras e senhores jurados, ao furtar três livros de ficção, em ato extremo de resistência ao nada que lhe é destinado pela vida, afirma que, de todas as mentiras empurradas pela garganta (da inexistência do racismo, da existência da igualdade, da justiça, do equilíbrio no julgamento do delito, do tratamento humano para seres humanos), a literatura é a mentira menos danosa. Por isso, peço sua absolvição.

* * * * * * * 

escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics