por Alexandre Luzzi ilustração Marcelo Martins Ferreira*
O menino Kaspar Hauser apareceu pela primeira vez numa praça de Nuremberg, Alemanhã. Era um estranho: ninguém sabia quem era ou de onde vinha. Trazia uma carta de apresentação anônima para o padre da paróquia local, contando que fora criado sem nenhum contato humano, em um porão, desde o nascimento até aquela idade (provavelmente 15 ou 16 anos) e pedindo que fizessem dele um homem com a capacidade de amar.
Quando apareceu em Nuremberg, o garoto não entendia nada do que lhe diziam; sabia falar apenas uma frase: “quero aprender o que é o amor.”
Soube-se mais tarde (quando ele aprendeu a falar) que uma pessoa, que Kaspar não conheceu, era seu mantenedor enquanto esteve isolado, deixando-lhe alimentos enquanto dormia.
Acolhido na paróquia, logo o padre se ocupou de iniciar sua socialização. Com o tempo, aprendeu a falar. Mesmo a linguagem não lhe permitia capturar esse estranho mundo em que vivem as pessoas. Sua dificuldade de comunicação era imensa, já que não tinha referencial emocional e afetivo. Logo vieram as primeiras lições sobre o amor, vindas do padre que o tutelava:
– Kaspar, o amor é algo ainda maior do que a morte e a dor, maior do que tudo. Esse foi o exemplo do nosso mestre, Jesus. Bem-aventurado é aquele que ama seu amigo “em” Deus, assim como seu inimigo por amor a ele também. E não se esqueça, quem semear da carne, da carne colherá corrupção, quem semear no espírito, do espírito colherá a vida eterna.
Kaspar Hauser se sentia confuso. Como representar figuras tão abstratas como Deus, espírito, eternidade, amor? Como desprezar seu próprio corpo se tudo o que podia conhecer até então eram resquícios mentais e afetivos de necessidades extremamente corporais como a fome, a dor, os impulsos sexuais e agressivos.
A incapacidade de comunicação e o nível de abstração exigido foram barreiras intransponíveis. Ao sucumbir da tarefa e na esperança de mais sucesso o padre enviou Kaspar, com uma nova carta de recomendação, para um cientista amigo chamado Rene, que recebeu o jovem com o seguinte discurso:
– Não se preocupe, nada escapa ao olhar da ciência, tudo que temos a fazer é encontrar uma metodologia adequada para investigarmos as causas desse fenômeno em questão. Antes me responda: após ter passado certo tempo na paróquia, como se sente? E o que pôde aprender?
Kaspar ficou em silêncio, mas não somente por sua dificuldade de falar e se expressar. Com esforço, ousou dizer:
– Sr Rene, o padre da paróquia foi muito gentil em me acolher e me explicou muitas coisas sobre quem criou o mundo e todas as criaturas, além disso, explicou coisas importantes sobre o amor e sobre quem sou, porém ainda não pude experimentar tal sentimento. Mas a experiência na paróquia não foi de todo mal, aprendi o que é o medo e hoje sou temente a Deus, além disso, sei que meu corpo pode ser um grande inimigo na busca do amor verdadeiro.
– Hora Kaspar, não leve isso tudo tão a sério, afinal, o que não pode ser demonstrado nada mais é do que um exercício de fé. Veja, talvez nosso corpo não seja esse grande vilão, tudo que temos a fazer é submetê-lo aos comandos da razão. Nosso corpo é uma máquina perfeita Kaspar, e pode estar aí a causa de todos os seus problemas, pois um sentimento como o amor também depende de uma produção orgânica e cerebral.
– Sr Rene, mas por quais razões Deus teria me criado com defeito?
– Talvez Deus não tenha nada a ver com isso Kaspar, você foi muito mal cuidado ao nascer. Lembre de quando comentei que para todo efeito há uma ou mais causas, então, talvez a formação de seu cérebro tenha sido prejudicada pelos maus cuidados.
Ao ouvir essas palavras Kaspar sentiu algo que, até então, não havia experimentado. Seu corpo se encheu de energia, seus caninos saltaram aos olhos do cientista, suas mãos se colocaram em posição agressiva e tudo que o Sr. Rene pode fazer foi nomear tal experiência para o conhecimento de Kaspar:
– Isso o que você está sentindo agora chamamos de raiva.
Logo em seguida, a imagem do padre da paróquia se apoderou da mente de Kaspar, seu corpo teve outra reação, dessa fez freando seus movimentos e produzindo nele uma espécie de apatia. Surgia nele a culpa, um novo sentimento a ser nomeado.
– Sr Rene, quer dizer que tenho um defeito no cérebro causado por outra pessoa e por isso não posso amar? O Sr. Seria capaz de concertar minha cabeça? O cientista sorriu ao observar tamanha ingenuidade e decidiu então enviá-lo para um amigo psicanalista. Quem sabe a ressignificação das experiências passadas não seria algo mais útil.
E lá foi Kaspar com mais uma carta de recomendação bater na porta do consultório do Sr. Sigmund. Na carta o cientista detalhava toda a sua trajetória incluindo suas últimas experiências. Ao lê-la com cuidado e atenção, Sigmund começou sua explanação:
– Veja Kaspar, todo discurso que assume um estatuto de verdade absoluta pouco pode dizer sobre o amor. A experiência do amor responde sempre a categorias como a contradição, a dúvida, o imponderável.
O Sr. Sigmund interrompeu seu discurso ao observar a expressão de angustia em Kaspar:
– O Sr. está querendo me dizer que quando amamos não possuímos garantia de nada, ficamos vulneráveis? Nesse caso, por quais razões escolhemos amar alguém?
– Jamais sabemos ao certo Kaspar, porém, dentro do que venho observando em minhas pesquisas, escolhemos alguém para atualizar e dar sentido às primeiras relações amorosas infantis. O amor não é um sentimento inato, é preciso aprender a amar a partir da experiência com aqueles que nos amam e, para tanto, é preciso a vitória parcial sobre dois inimigos, o medo e a culpa.
Ao ouvir o dr. Sigmund, Kaspar sentiu desespero, pois algo lhe dizia que a possibilidade de se humanizar seria inalcançável. Tempos depois, Kaspar foi encontrado morto. Nada souberam sobre os motivos de sua morte (se assassinato ou suicídio). No cemitério de Ansbach, na Alemanha, há uma inscrição na lápide de Kaspar assinada por um desconhecido que diz: “Aqui jaz um desconhecido”. De fato, nada resume melhor o misterioso percurso da vida e morte deste homem.
O FILME
O texto foi inspirado no filme alemão de 1974, Jeder für sich und Gott gegen alle (O Enigma de Kaspar Hauser, na versão brasileira), do diretor Werner Herzog. O filme narra a história de Kaspar Hauser, uma criança abandonada envolta em mistério, encontrada na Alemanha Ocidental do século 19. O filme fez parte da competição para a Palma de Ouro no Festival de Cannes (1975), onde ganhou três prêmios. Abaixo, a versão completa e legendada em português.
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*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto
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