Não me diga que conheces esta cor.
Se queres vista-a, calce-a, enrola-te em bandeira,
faça fotos, poses e publique-as na rede com essa cor que pretendes,
cobre-te o calvo pelas conveniências que te esgueiras.
Mas não te atrevas a dizer que a conheces.
Porque é sangue, poeira da terra, queimadura do sol, queimadura de gelo, vergonha, digna raiva.
É tudo o que ouvistes contar, e não entendes.
É triste hoje te ver pela rua
com essa estrela que em ti não brilha, decora; essa cor que em ti é fantasia, revolta.
Fiques certo: essa cor que vestes, assim, é quase escárnio.
Essa cor que vestes não é tua.
Primeira coisa: “Voto na Dilma é veto contra o Aécio”, parafraseando o deputado federal Marcelo Freixo (Psol). Um mote que deve ser levado muito a sério na atual conjuntura, mas sem descuidar da reflexão cuidadosa que se exige sobre esta eleição 2014 no Brasil – a mais disputada e interessante dos últimos anos, de forma a amenizar os perigos do maniqueísmo construído na narrativa desse pleito e a falta de juízo crítico diante das estripulias, digamos assim, do Partido dos Trabalhadores (PT).
“Tá serto”, PT. Votaremos em vocês outra vez, mas entenda este voto-veto como um marco, definitivo, porque também é preciso humildade para o reconhecimento e autocrítica para a ação. A esquerda do país, mesmo a de discernimento e principalmente a deslumbrada, fisiológica ou acrítica, considera que o senador Aécio Neves (PSDB) na condução do Estado hoje representaria um dos maiores retrocessos da história da república brasileira, e por isso, pese a existência e o fundamento da campanha pelo voto nulo, há uma aliança tácita entre alguns, e barulhenta entre muitos, para apoiar mais um mandato petista, em que se cria uma atmosfera de terror maniqueísta, supostamente justificada, novamente, pela urgência eleitoral, que tergiversa nossa conjuntura. No entanto, a realidade deve ser, inadiavelmente, pontuada de forma assertiva e clara.
Felizmente entre os críticos esse apoio não se dá sem polêmicas ou desconfianças, algo que se entende observando três grandes traços do pleito e da dinâmica política do país que se arrasta há anos sobre os quais podemos apontar:
1- O crescimento da direita e da bancada ruralista no congresso nacional no primeiro turno – a chamada Frente Parlamentar da Agroindústria, como aponta o professor Nildo Ourique, da UFSC, tem hoje 257 deputados e senadores, metade do parlamento, e está comprometida com as estruturas atrasadas da propriedade da terra e do latifúndio. Um quadro conservador que fez relevo e expressa os extraordinários benefícios que esse setor obteve nos governos petistas, notoriamente amarrado a suas contradições. Ao ponto de uma das principais lideranças desse grupo, a senadora Katia Abreu (PMDB), figura notória da direita do país, ter declarado apoio a Dilma, além, claro, do apoio de outros personagens esdrúxulos da política brasileira, como Fernando Collor, ex-presidente por impeachment, que nunca deveria ter saído do ostracismo, mas que o PT acolhe sob a empáfia retórica do aclamado pragmatismo político.
2- O discurso entre o bem e o mal – o maniqueísmo com que foi construída a narrativa do processo eleitoral, supostamente representado, respectivamente, pelo PT e pelo PSDB, que ignora, convenientemente, as bizarras contradições políticas, principalmente petistas, e a difusão ideológica que caracteriza os partidos políticos brasileiros atualmente, encarcerados, com gosto ou não, pela pressão da governabilidade. Essa é uma reflexão fundamental para evitar o voto acrítico em Dilma, impulsionado pela retórica dos militantes, ou dependentes, do partido que propositalmente deixam de lembrar que o atual modelo não consegue fugir da equação que associa qualidade de vida e crescimento econômico segundo a lógica do capital.
3- Os atuais desafios do PT e da esquerda – ganhando ou perdendo estas eleições, o PT terá que se reavaliar. Durante vários anos os governos do PT tiveram índices elevados de popularidade, e houve acomodação do partido. Depois das “jornadas de junho de 2013”, o quadro se alterou, deixando várias perguntas em aberto e tensão no debate eleitoral. Se ganhar, o partido será pressionado a não mais se contentar com sua ortodoxia econômica com alguma preocupação social, e deverá avaliar seus compromissos com a classe trabalhadora, deverá se esforçar mais para sair do modelo de capitalismo de mercado. Se perder, haverá uma interessante e pesada avaliação do seu papel, e erros, na experiência democrática brasileira com importante repercussões na reorganização das forças políticas de esquerda do país.
OS PROJETOS EM DISPUTA – Mesmo considerando essas generalizações, pode-se ainda afirmar que há, guardadas suas grandes e inegáveis semelhanças, dois projetos brasileiros em disputa: um social-desenvolvementista, baseado em alguma preocupação com inclusão social e distribuição de renda; e outro neoliberal, baseado em ajuste fiscal, redução do papel do Estado e radicalização do tripé macroeconômico liberal (meta de inflação, superávit fiscal e câmbio flutuante).
O primeiro projeto é incompatível em larga medida com o modelo macroeconômico exercido pelo PT, que é, essencialmente, o mesmo desde o governo Fernando Henrique Cardoso. De modo que o PT, aferrado a sua tese de gradualismo, usa, em uma forma especifica, o mesmo slogan de governos autoritários do passado do Brasil de “ transformação lenta e gradual”, agora, porém, em lugar do objetivo de democratizar as instituições nacionais sem afetar a ordem nem apontar culpados, busca avançar em políticas públicas que favoreçam os mais pobres, mas mantendo e ampliando o poder do capital.
O Partido dos Trabalhadores em 12 anos de governo sequer tentou mudar os marcos institucionais e constitucionais dos governos neoliberais que o antecederam – a exemplo do que fizeram outras nações latino-americanas com governos progressistas – e se contentou em fazer o que chama de “governo do possível”. Mesmo com a retórica progressista, o PT nunca prescindiu do capital transnacional que lhe dá suporte e acesso a mercados, e em troca o Estado facilita créditos e recursos a grandes empresas em detrimento de investimento social, algo que Frei Betto chamou de “processo exportador-extorsivo”. Esses recursos são de ordem energética, agrária e financeira e caracteriza a contradição desse modelo neodesenvolvementista que, ao fim e ao cabo, anula as diferenças estruturais entre esquerda e direita, fazendo com que o chamado processo pós-neoliberal, em tese em curso, aceite a hegemonia capitalista. Mas o segundo projeto, representado por Neves, é ainda pior, porque a economia funcionará atendendo ainda mais os interesses do capitalismo financeiro, diminuindo, por exemplo, o papel dos bancos públicos no funcionamento da infraestrutura social em favor de bancos privados. O condicionamento fiscal que se dará para atender promessas de redução da meta de inflação restringirá o gasto público em políticas sociais, gerando desemprego e recessão, aumentando as desigualdades. E as desigualdades são o centro nevrálgico dos problemas de um Brasil que não precisa focar em fazer mais riquezas, senão distribuir a existente, radicalmente.
CAMINHOS DA JUSTIÇA SOCIAL – Para realmente mover-se em direção a um futuro focado na libertação dos nossos povos e na conquista de uma sociedade pós-capitalista verdadeiramente emancipada, dois pressupostos básicos sãos necessários: separar crescimento de igualdade e reinventar a democracia. O primeiro exige superar o estruturalismo econômico, ir além dos instrumentos econômicos tradicionais que, por vezes, quando combinados com vontade política, permitem redução de assimetrias. A luta por igualdade não pode depender de crescimento econômico, porque crescer hoje significa aumentar também o uso de energias poluidoras, como petróleo e carvão, que está concretamente extinguindo o planeta. O crescimento não é infinito porque os recursos e o planeta são finitos. O crescimento, sem ser pensando criticamente, produz e reproduz pobreza. De forma que a transição social é inseparável da transição ecológica.
As desigualdades aumentaram em todo o mundo nos últimos 30 anos com a hegemonia neoliberal, e esse tipo de capitalismo destruiu a capacidade humana de viver como iguais, e força-nos a viver como consumidores. O neoliberalismo destrói nossas liberdades e nos deixa refém de um sistema financeiro que capta a renda produzido pelo trabalho. Igualdade já não pode ser entendida apenas como uma questão de distribuição de riquezas, mas como uma filosofia de ação social, como afirma o intelectual francês Pierre Rosanvallon.
O segundo pensa a democracia, como regime, que tem progredido em todo o mundo, mas degradando-se como forma de vida em sociedade. Ou seja, cresce o sufrágio universal e a liberdade liberal, mas se retrai a ideia de bem-viver comum. A democracia liberal foi capturada pelo poder econômico e distanciou-se da cidadania. A democracia está descolada das aspirações da sociedade e, no caso do Brasil, o sistema eleitoral vigente impõem um presidencialismo de coalizão que gera alianças de interesses fisiológicos, e degradação ideológica, portanto descolada de real emancipação social, em nome da governabilidade. A reforma política, assim, é um tema essencial desta eleição brasileira porque nos dá uma chance, mesmo que institucional, de “democratizar a democracia”, que deveria passar não apenas por tópicos eleitorais, mas por aumento da participação cidadã na gestão pública, garantia do acesso público à informação, extinção do Senado, reavaliação do sentido de representação e discussão da relação justiça versus controle democrático.
UM CRITÉRIO CLARO – Entre o jogo das semelhanças/diferenças, o projeto de política externa é o que deixa mais claro marcações entre Dilma Roussef e Aécio Neves. Enquanto a maioria dos analistas internacionais sérios defendem a continuidade da integração latino-americana que o Brasil promoveu na última década, o programa de Aécio fala em “flexibilizar o Mercosul”, ou seja, atacar uma das mais importantes iniciativas de integração na América do Sul, e que não se limita ao comércio.
O PSDB, defendendo a velha lógica da integração apenas pela via comercial, quer se alinhar com a Aliança do Pacífico, de países com governos atualmente de orientação conservadora, e regressar ao alinhamento assujeitado às potências tradicionais como Estados Unidos, Japão e União Europeia, que não deixa margem para o questionamento da arquitetura internacional, que deve fortalecer os relacionamentos Sul-Sul. O Brasil precisa aprofundar o seu compromisso político e econômico com a região e sua presença no Sul Global e não ignorar as relações Norte-Sul, relacionar-se com esses países como igual.
Já o PT pretende avançar na projeção internacional “ativa e altiva”, como definiu certa vez o ministro Celso Amorim, e isso se expressa na promoção de uma identidade terceiro-mundista, mas com participação entre grandes atores emergentes, como o BRICS, a defesa do multipolarismo, a reforma do multilateralismo, a ênfase na Unasul e na Celac – opções contra as quais o PSDB e seus seguidores se manifesta reiteradamente.
AVANÇAR É SUPERAR –De modo que há hoje no Brasil, mais do que nunca, uma disputa entre elites, com a diferença que no PT, por conta do seu DNA, ainda há quem queira continuar expandindo salários reais, direitos sociais e bens públicos, enquanto que o PSDB considera que o “peso” democrático gera irracionalidades econômicas que acabam prejudicando o cidadão.
Um dos grandes traços problemáticos é que governo viável, segundo o que as lideranças petistas e seus seguidores não cansam de repetir e executar, só se dá quando assentado nessa ladainha monotemática que celebra o “pragmatismo”, e a “governabilidade”, relevando, propositalmente, sua indisposição para que o parâmetro da universalização da cidadania que, a melhor juízo, tentam promover, não fosse apenas o do cidadão-consumidor, que acaba introduzindo na sociedade valores de mercantilização de diversas dimensões da vida e da natureza e, em última análise, reforçando o conservadorismo. Concretamente é isso o que ocorre hoje, em lugar de projetar alternativas ao capitalismo, em largo prazo e, em curto prazo, ao menos combinar certas medidas inegavelmente assistencialistas em vigência – necessárias porque urgentes – com processos de formação e organização políticas que evitassem a acusação de má-fé com a criação de redutos eleitorais que reforçam esse ciclo vicioso.
Na lógica histórica da esquerda latino-americana nunca se materializou a ideia de superação etapista do capitalismo. Essa suposta realidade de hoje exige muito cuidado para impedir que os avanços, tímidos mas reais, sejam revertidos pela restauração conservadora e para que a desesperança não se imponha definitiva e irreversivelmente. O PT, como governo, tem mais uma oportunidade de fazer valer o seu vermelho, mas o desafio também abrange outros partidos e movimentos sociais, no jogo da pressão, e comprometidos com a ampliação da nossa imaginação emancipatória.
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Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais, candidato a escritor, e viajante à Ítaca, especial para o Nota de Rodapé
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