Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.
(Episódio 19)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Quando vi meu pai morto, faz um ano, pensei para me consolar: ele teve uma vida imensa. Conheceu o fracasso, mas também o sucesso. Tentou, errou, tentou novamente. Foi homem capaz de uma consistente história de amor de vida inteira com a minha mãe. Acreditou no comunismo dos quinze aos oitenta e três anos de idade. Deu muito azar em várias situações, mas, no balanço das perdas e ganhos, ele foi um sujeito de sorte.
Ao ler trechos das biografias dos mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, percebo o quanto a maioria era jovem. Gente que nem havia encostado nos trinta. Olho para as fotografias e me ponho a imaginar o que eles seriam hoje. Certamente, velhinhos e velhinhas interessantes. Talvez, alguns até desinteressantes. Não importa. Teriam décadas inteiras para viver suas histórias.
Por exemplo, me detenho no rosto de Stuart Edgar Angel Jones, o Tuti. Um rapaz findo aos 25 anos. Não por conta do vírus Ebola ou por desastre de carro. Ele foi torturado até a morte dentro do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Amarram-no a uma viatura, com a boca colada ao cano de escapamento. Daí deram voltas no pátio. A viatura acelerava e freava. Tuti com a pele esfolada, tossia forte.
Essa cena foi testemunhada - e depois relatada a Zuzu Angel, mãe de Stuart - por um outro preso, o Alex Polari de Alverga. Fim da história? Não. Até hoje, novembro de 2014, os restos mortais do rapaz não foram encontrados. Há dois relatos diferentes: o primeiro diz que seu corpo foi jogado de um helicóptero em alto-mar. O segundo, ele teria sido enterrado como indigente em algum cemitério carioca. Grandes chances para ser o Cemitério de Inhaúma, aquele que Lima Barreto (1881-1922) eternizou no estupendo conto Os Enterros de Inhaúma.
Procuro mais informações e descubro que antes de ingressar no MR-8 - um dos pequenos grupos que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura - Stuart Angel havia sido um desportista, tendo ganho o bicampeonato de remo pelo Flamengo. Também tivera vida de estudante de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Dois mais dois igual a quatro, tento imaginar o que Stuart teria feito se não tivesse a vida interrompida naquele maio de 1971. Medalhista de Olímpiada? Economista de banco? Professor de educação física? Vendedor de secos e molhados? Qualquer coisa poderia ter acontecido na vida dele, do mesmo jeito que qualquer coisa acontece nas nossas.
Na data de sua prisão, ele era casado com Sônia Moraes Jones. Uma moça também militante, também torturada e morta em 1973. Também desaparecida. Também cheia de possibilidades. Será que eles estariam juntos até hoje? Será que teriam filhos? Quem sabe agora teriam netos? Nenhum dos dois viveu para contar o futuro deles para nós.
Aliás, eles não tiveram foi tempo. Porque na casa dos vinte anos, a gente ainda nem tem um passado muito grande. Temos, em geral, a cabeça cheia de sonhos futuros. Eu por exemplo, em 1971, achava que seria médica. Acabei estudando cinema e me tornando escritora - entenda-se, alguém que escreve por prazer de escrever.
Mesmo quando narro uma história dolorida como essa, há a delícia de contar.
Stuart e Sônia foram apenas dois entre os muitos jovens que a ditadura militar torturou, matou e sumiu com os corpos. Também fizeram isso com pessoas mais velhas. Os torturadores e seus mandantes não faziam cerimônia. Eram todo-poderosos. E, até os dias atuais, esses senhores da morte estão livres e soltos por aí. Não digo leves. Pois não acredito que sejam.
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
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