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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Pensando em mim

por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Minhas andanças são o meu combustível. Se a atividade de cronista é alimentada pela capacidade de observar e traduzir o cotidiano, as coisas, pessoas e situações que nos cercam e nos acompanham, para mim há um elemento adicional indispensável, que é a possibilidade de viajar e me sentir desatada, solta nas ruas de algum outro lugar. Não sei que bicho é este, se algum vírus ou mutação genética. O que sei é que preciso de vez em quando me perder em longas peregrinações urbanas, caminhar sem rumo certo, olhando, sentindo, ouvindo e degustando os lugares, as gentes, odores e temperos alheios ao meu dia-a-dia candango, tão conhecido e tão entranhado.

A solidão nas viagens é cheia de sutilezas. Ela permite sintonizar olhos e ouvidos no alheio, naquilo que se oferece a cada passo dessas pernas forasteiras. Aqui, como em muitos lugares neste nosso século 21, as pessoas andam falando em seus celulares. Quando paradas ou sentadas, os olhos ficam grudados nas telas brilhantes. Muitas usam fones de ouvido enquanto conversam, gesticulam e argumentam em todas as línguas possíveis, como se estivessem no sofá da sala, dando a impressão de que algum truque de ilusionismo as impede de perceber o entorno de pessoas participando involuntariamente da discussão sobre o alegado assédio moral da chefe ou o comportamento descontrolado do filho adolescente. Mais intrigante ainda quando se nota que a privacidade e o tom baixo da conversa são traços marcantes da cultura local. Alguém deve estar se ocupando de analisar a humanidade depois do advento da telefonia móvel.

Porém, uma coisa é estar eventualmente sozinha, ou mesmo morar sozinha, tendência em alta neste nosso tempo de organização familiar em arquipélagos. Outra, bem diferente, é viver na privação do afeto e dos vínculos emocionais, que são a verdadeira essência da condição humana. Como os espelhos em que precisamos conferir nossa aparência todo dia, várias vezes por dia, cada vez que passamos diante de algum deles, as pessoas com quem trocamos afeto nos confirmam quem somos, e, em primeira e última instância, que viver vale a pena.

O sol tem sido generoso comigo nestes dias de outono frio do Norte. Um detalhe essencial, pois sem ele eu começo a definhar rapidamente. Além disto, como dito à perfeição pelo Dorival Caymmi,

“A estrela Dalva me acompanha
Iluminando o meu caminho
Eu sei que não estou sozinho
Pois tem alguém que está pensando em mim.”

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

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