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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Não como antes


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

Há poucos dias, o calendário trouxe de volta a homenagem a Iemanjá, divindade do candomblé, apropriada por outras religiões e adaptada à cultura brasileira, na lambança sincrética que nos caracteriza. Quase nada disto chegou a mim, infelizmente, pois nos ambientes evangélicos sempre houve um desprezo - frequentemente, desrespeito - pelas outras religiões. Do ponto de vista da compreensão da nossa identidade e cultura, uma grande e lamentável perda, que só se agravou nas últimas décadas, marcadas pelo aprofundamento da ignorância e intolerância deliberadas.

É uma linda figura, a da rainha das águas, cantada e celebrada em poemas, orações e canções. Se me fosse possível crer, estaria fervorosamente esperando que ela interviesse no quesito de sua especialidade.

Anos atrás, conheci uma pessoa da elite brasileira, filha de uma daquela centena de famílias "donas" do país. Educada por preceptora alemã quando menina, na adolescência foi matriculada num dos colégios que preparavam as moças das famílias proeminentes para se casar com homens que valessem a pena, sendo capazes de comandar a criadagem e entreter os convidados em francês. Essas coisas fui entendendo aos poucos, mas o que me chamou a atenção, logo nos primeiros contatos, foi como ela lidava com o dinheiro, ou melhor, não lidava. Ele sempre fizera parte da sua vida, nascera com ela, de maneira que ela o via como algo natural e disponível, sobre o qual não havia o que pensar ou com que se preocupar. Ignorava o valor monetário das coisas, o preço das mercadorias não lhe interessava, apenas adquiria o que lhe convinha ou desejava e pagava as despesas cotidianas, sem qualquer tipo de cálculo ou registro.

Enquanto a elite vivia como se o dinheiro não existisse, o Brasil inteiro vivia como se a água não existisse, de tão farta, barata e disponível que era, com a exceção histórica do semiárido nordestino, sempre tão conveniente para confirmar as desigualdades e forjar políticas públicas calcadas no paternalismo e na corrupção. Cinco anos atrás, era impensável, para a grande maioria de nós, que ela pudesse acabar, desaparecer. Desenvolvemos hábitos irresponsáveis, desde a dona de casa que lavava a calçada e o quintal de mangueira em punho, passando por sistemas de abastecimento desleixados e incompetentes, e chegando aos governantes, desprovidos da capacidade de planejar ou de reagir aos indícios da escassez. Merece um destaque especial a exploração cinicamente predatória feita pela indústria e grandes empreendimentos. A escassez que se alastra não veio por meio de alguma mágica aquática conspiratória, por muito que se tente fazer crer que sim.

Se ela acabar mesmo, será o fim de tudo. Não vai haver petróleo, soja ou diamante que dê jeito, ou que nos console. Porém, iluminando um pouco o tom do registro, talvez seja esta a oportunidade para uma reflexão coletiva profunda sobre o quanto o individualismo, a ganância e o descaso com o bem comum nos empurraram para este lugar de perplexidade com a constatação de que somos perfeitamente capazes de nos autodestruir com relativa facilidade. Ou ainda, por outro lado, de que podemos também encontrar soluções - na expectativa de que existam, não por iniciativas individuais, nem por decretos ou por milagres. Mas sabendo, desde já, que nunca mais será como antes.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Nada é como antes. Razão tinha Lavoisier ": tudo se transforma". Infelizmente
vemos que tudo se transformou, de forma tão rápida e diferente, que nem permite qualquer comparação.Grassam a imprudência, o mandonismo, a corrupção, o desleixo para com a coisa pública, o egoísmo, enfim, tudo fora
de qualquer previsão. Por isso, NADA SERÁ COMO ANTES.
Parabéns pela clareza do raciocínio, que, aliás, nunca lhe faltou.
Abraços a você e Fernando
Mummy Dircim

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