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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Tarde na biblioteca

por Carlos Conte  ilustração Tiago Candido

 Duas mesas atrás de mim, o ex-sócio do meu tio lia o Estadão. Compenetrado, debruçado sobre o jornal, às vezes levantava a cabeça e, olhando pra frente, soltava algum comentário sobre as notícias, como se estivesse conversando com alguém, mas não tinha ninguém na cadeira ao lado. Na verdade, não tinha ninguém sempre. Esse cara já foi rico, chegou a ter motorista particular, vários imóveis pela cidade, mulheres lindas, mas não suportou a falência da empresa, hoje é viciado em analgésicos pesados e pode ser visto, pele e osso, vagando feito fantasma pelas ruas da Lapa ou falando sozinho enquanto lê o jornal numa biblioteca pública da Vila Romana.

Anos frequentando essa biblioteca e ainda não me acostumei com o bibliotecário. Ele tem uma deformidade no pescoço que me deixa intrigado. Não consigo pensar em outra coisa quando estou perto dele. Se ele passa pela minha mesa, meus olhos são instintivamente capturados pela imagem: parece que tem um canudo daqueles mais grossos de refrigerante implantado sob a pele, uma elevação tortuosa (a maquete de uma cordilheira) que vai do peito até o queixo, e enquanto admiro esse pescoço fico pensando que isso pode ser fruto de alguma intervenção cirúrgica, quem sabe até alienígena. Nunca se sabe. Além disso, o sujeito não me parece ser muito bom da cabeça, mas até aí estamos todos no mesmo barco, com a certeza de que ninguém se salva neste mundão cansado. Viver entre livros pode fazer mal à saúde, prova disso é o doidão do Piauí que vivia (ou ainda vive?) entrando e saindo da biblioteca da FFLCH.

Dia agitado na biblioteca da Rua Catão. Vários tipos interessantes. Quanto mais acabados, mais interessantes. E eu ali no meio, querendo silêncio, fingindo ser um normal (repito: estamos todos no mesmo barco, estamos todos desesperados). Outro dia bati boca com duas faxineiras que estavam conversando alto no corredor, e hoje penso que o errado ali talvez seja eu. Um amigo arquiteto me falou que o melhor jeito de se projetar uma praça é o seguinte: instale uma câmera escondida, veja de que forma as pessoas estão usando esse espaço – isso vai determinar onde ficarão as passarelas, os canteiros, os postes e todo o resto. No caso da biblioteca, vejo que seus antigos frequentadores e funcionários já deram utilidades para o espaço, que não necessariamente é o uso considerado correto ou normal para uma biblioteca.

Crianças com uniforme da escola fazem “trabalho” em grupo com canetas coloridas e cartolina (imitam aos berros a professora de ciências). Um mendigo dorme profundamente duas mesas ao lado, de vez em quando soltando um ronco grave e profundo, um ronco clássico, que me faz lembrar aqueles roncos do Leôncio do Pica-Pau. Um homem de terno e mãos bem peludas e suadas faz exercícios numa apostila de inglês básico: esse ainda não desistiu, não largou a rapadura. Na mesa de trás, novamente o ex-sócio do meu tio sussurra alguma coisa que eu não escuto. E tudo isso na mesma sala de leitura, aonde eu fui com o objetivo de escrever uma crônica sobre o carnaval sem saber que seria forçado a mudar de assunto na última hora. Escrever crônica tem dessas.

Como se não bastasse, entrou um grupo de quatro mulheres falando pelos cotovelos, como se entrassem na padaria ou na mercearia, mas logo descobri que a biblioteca para elas era uma espécie de sala de estar: estavam ali para descansar as pernas e bater papo. Sentaram-se em frente à estante de revistas, uma delas pegou uma Super Interessante e começou a folheá-la, molhando a ponta do dedo cada vez que ia virar uma página, até que alguma coisa na revista a fez arregalar os olhos:

– Olha só o que diz aqui: pedra nos rins pode ser maior que um caroço de maracujá!

– Isso eu já sabia – completou a mais velha, a voz da experiência. – O Artur, filho do vizinho de fundos do... – e aí ela foi emendando um monte de nomes e referências até que as outras se lembrassem – o Artur quase teve um troço quando viu o tamanho da pedra que tiraram dele. Do tamanho de uma azeitona!

As outras ficaram chocadas. Eu também. O bibliotecário se levantou e foi na direção da mesa delas. Estavam largadas sobre as cadeiras como se estivessem num sofá. Uma bandeja com café e sequilhos ia bem, pensei. Nem o trabalho de ciências do 6º ano era tão barulhento, por isso imaginei que o bibliotecário estava indo até elas pedir silêncio, afinal aquilo ainda era uma biblioteca.

Quando ele passou por mim, não pude resistir ao seu pescoço, irresistivelmente feio. Sentou-se numa cadeira vaga junto delas e falou:
– Eu conheço o Artur, Margarete! Ele mora no meu prédio.

Só eu não conhecia o Artur. Estava mesmo deslocado.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Tiago Candido, ilustrador, especial para o Nota de Rodapé

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