.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 10 de março de 2015

Quem tem saudade da Oban?

por Tomas Chiaverini*

  – O que você acha? – o doutor Carlos, meu médico, perguntou uma semana atrás, enquanto eu sentava em frente à mesa ampla do consultório no bairro do Jardins.

Fiz cara de quem não entendeu e ele foi adiante.

– Não acha que a gente tem de pegar em armas? Você que trabalha na televisão, sabe das coisas de bastidores, não acha que a gente tem de soltar umas bombas em Brasília, arrancar esse povo de lá e começar tudo de novo?

Na hora confesso que fiquei um pouco sem ação. Desconfortável e sem jeito argumentei que não, que qualquer democracia é melhor do que qualquer ditadura, que os problemas devem ser resolvidos dentro das instituições estabelecidas.

O doutor Carlos rebateu dizendo que democracia é muito bom quando o povo é educado, mas que aqui não tem jeito, porque com os votos do Nordeste o PT vai ficar no poder pra sempre.

Ainda tentei argumentar mais um pouco, mas, como o doutor Carlos estava prestes a examinar partes um tanto delicadas, minha resposta foi curta e rasa. Agora que o exame já passou, tudo está bem e estou a uma distância segura do estimado discípulo de Hipócrates, vou tentar melhorar minha sustentação verbal.

Eu não só não acho que devemos pegar em armas como acho que, no nível atual da nossa democracia, pessoas educadas como o senhor, doutor Carlos, deviam ter vergonha de sequer aventar tal hipótese. Vou tentar simplificar, pra não ter perigo de o senhor não entender.

Na última vez que alguém resolveu pegar em armas pra resolver as coisas, o país viveu vinte dos mais negros anos de sua história. Médicos como o senhor, ou como meu avô, doutor Reinaldo Chiaverini, eram expulsos de universidade pelos simples fato de pensaram diferente do pessoal das armas. O pessoal das armas, claro, não gosta de pensar porque, por ser dono das armas, não precisa. Por isso mesmo odeia os que pensam, acha que são ameaças. Então, da última vez que estava no poder, o pessoal das armas saiu à caça dos que pensavam. Agora imagine um país em que só por pensar o senhor podia ser preso num lugar como, por exemplo, a Operação Bandeirantes, a Oban.

A Oban era um carcinoma típico da ditadura, um modelo logo replicado por todo o país. Era uma espécie de delegacia financiada com dinheiro de gente como o senhor, que achava o povo das armas legal, e comandada por um homem que gostava de judiar dos outros, o delegado Sergio Paranhos Fleury. Também tinha espaço para os sádicos do exército, mas o senhor, uma vez preso lá no meio, nunca saberia direito quem era o que.

Em lugares como a Oban, o povo das armas torturava. Hoje, a nossa Polícia ainda gosta de usar métodos parecidos e o pessoal do panelaço finge que não vê porque as vítimas, em geral, são pretas e pobres. Mas na época a coisa era mais profissional. Eles tinham aparelhos feitos especialmente para infligir dor. O mais famoso era o pau de arara, onde penduravam gente como se fossem pedaços de carne num açougue.

Mas tinha coisas mais elaboradas, como a “cadeira do dragão”, onde os presos eram sentados nus pra longas sessões de eletrochoques, ou a “coroa de cristo”, uma braçadeira de metal com parafusos que apertava lenta e implacavelmente o crânio dos interrogados, causando dores lancinantes. Ou ainda o “telefone”, um magneto ligado numa manivela pros torturadores irem aumentando pouco a pouco dose de energia dos choques, o que ajudava a desestabilizar os presos. Antecipar a dor provoca tanta agonia quanto a dor em si.

Eles gostavam especialmente de eletrocutar órgão genitais porque isso humilha, ajuda a implodir a autoestima. Eles realmente adoravam machucar essas partes mais queridas. Enfiavam arames pelas uretras dos presos e iam esquentando até ficar incandescente. Amputavam os bicos dos peitos com alicates para cortar metal.

As mulheres sofriam mais. Eram estupradas, não só por vários homens da lei, mas por cassetetes, porretes e barras de ferro. Eles gostavam muito também de torturar casais. Enquanto a mulher era estuprada, levava choques, safanões, pontapés, cusparadas e mijadas, o companheiro era obrigado a assistir. Depois invertiam as posições e o que tinha apanhado era obrigado a assistir, sabendo como ninguém a dor que seu ente querido estava experimentando.

Se o senhor acabasse preso, doutor Carlos, eles poderiam torturar o senhor por meses a fio. E nem o senhor nem ninguém poderia fazer algo pra mudar isso porque as instituições simplesmente não funcionavam. Eles se divertiam muito com tudo isso. Quando algum preso falava, tinham uma bandinha dos torturadores, que descia as escadas tocando marchinhas pra comemorar.

Como torturavam por muito tempo e com muita violência, eles tinha um médico que cuidava pros presos não morreram. Mesmo assim, alguns presos, que podiam muito bem ser inocentes porque nunca haviam sido julgados, acabavam morrendo. Nem por isso a diversão terminava.

Eles cortavam os corpos, quase sempre de jovens universitários, em vários pedaços pra enterrar em lugares diferentes. Mas guardavam as pontas dos dedos. Depois saíam com elas numa viatura descaracterizada, de preferência na hora do rush, e iam largando os pedacinhos de gente sobre o asfalto. Assim os outros carros passavam por cima e destruíam de vez as digitais.

Isso tudo, doutor Carlos, aconteceu na rua Tutóia, a menos de três quilômetros do consultório do senhor. Foi há pouco tempo, talvez na época que o senhor começasse a pensar na carreira de medicina.

* * * * * *

Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha no Nota de Rodapé.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics