Viver em um país diferente do seu é reaprender a vida cotidiana todos os dias. Um exercício de alteridade e de desautomatização que sempre me pareceu dos mais estimulantes e, ao mesmo tempo, inquietantes. O familiar, o que se faz já sem sequer pensar, os códigos incorporados nas pequenas rotinas diárias – é tudo novo. No detalhe. Atravessar a rua, entrar e sair do supermercado, subir e descer escadas, cumprimentar os vizinhos, relacionar-se com prestadores de serviços... enfim, a lista é longa.
E no topo da minha, tem estado, ultimamente, o manter-se informada e situar-se em um novo contexto político. E olha que é dos EUA que estou falando, nada assim tão distante da nossa americanizada gramática política e cultural. Mas o fato é que ler os jornais todos os dias tem sido como ler um mapa ao caminhar pelas ruas de uma nova cidade. Primeiro, você mal consegue se situar no miúdo das ruas mais próximas (bem, talvez não você, orientada/o de nascença, mas eu sou assim, ligeiramente perdida nos espaços concretos da vida), para então começar a adquirir alguma noção de sentidos, bairros, movimentos urbanos. Até se sentir no domínio do espaço leva algum tempo. E até se sentir no domínio do contexto político de cada notícia também. Não tenho visto noticiários na televisão – hábito que já não tinha no Brasil e que decidi manter afastado da minha rotina por aqui. Então, converso com as pessoas, leio o jornal e escuto o rádio. E que instituição, o rádio! Nada empoeirado, nada envelhecido, o rádio é fresco e revigorante. São muitas as estações, algumas com alto grau de engajamento político.
Foi no rádio que ouvi, no dia 11 de março, que Obama declarou a Venezuela uma ameaça à segurança nacional. À segurança nacional dos EUA, veja bem. E que Maduro respondeu dizendo que, oras, ameaça à segurança nacional são os EUA! E depois ouvi as análises dos especialistas convidados, todas destacando o equívoco de Obama ao jogar lenha nessa fogueira. Ouvi que estão substituindo Cuba pela Venezuela como bode expiatório na América Latina. Que a Cúpula das Américas está chegando e as manifestações se farão sentir, comprometendo inclusive a recente reaproximação entre EUA e Cuba. Que a dureza das declarações sobre a Venezuela não são nada coerentes com o retardo e a quase negligência das declarações e ações a respeito do que tem acontecido no México, por exemplo. Ouvi uma representante da Casa Branca sendo descascada por repórteres em uma coletiva, ao afirmar que os EUA há muito tempo não se envolvem com mudanças de poder e de governo inconstitucionais. “Como assim, não se envolvem?”. “A senhora poderia definir o que considera muito tempo?”. “A senhora poderia definir o que o governo considera inconstitucional?”.
Tenho ouvido também, desde o início da semana, que em Ferguson a luta pelo enfrentamento ao racismo continua com força. As pessoas seguem nas ruas, fazendo muita pressão. Especialmente depois do julgamento que inocentou o policial que matou Michael Brown. O Departamento de Justiça divulgou um relatório que traz dados sobre o racismo institucional e seu impacto nas ações da polícia (confira aqui). Logo depois, vieram a público trocas de e-mails entre policiais com expressões bastante explícitas de racismo (leia mais aqui). Resultado? Departamento de polícia em crise, com pedido de renúncia de policiais e, mais recentemente, do chefe da polícia. Que, aliás, demorou demais, como afirmaram manifestantes à repórter da rádio. [A rádio a que me refiro é a WPFW, que você pode conhecer e ouvir online, aqui].
E assim vão compondo meu mapa político as notas washingtonianas capturadas a cada dia. Um mapa tão parecido e, ao mesmo tempo, tão diferente daquele ao qual me acostumei no Brasil. Parecido o suficiente para reconhecer, por exemplo, em Ferguson, nossas racistas cidades e polícias brasileiras. Diferente o suficiente para me inquietar ainda mais diante de sua violenta resistência a toda e qualquer evidência de que o racismo segue matando muito, todos os dias.
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Nina Madsen. Escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Desde janeiro de 2015, vive em Washington, DC – novo cenário de aventuras e leituras pelo avesso do mundo.
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