Que fique claro, desde o início. Toda corrupção precisa ser combatida e punida. Apesar de redundante, cabe frisar: isso vale para corruptos e corruptores. E o rigor que vale para uns, deve valer para todos.
A corrupção está presente em todas as esquinas e praças do cotidiano brasileiro, nas esferas pública e privada, religiosa e filantrópica. Em todos os poderes, inclusive no Judiciário, onde é mais difícil pôr a mão. Basta lembrar que membros desse seleto grupo de “justos”, quando pegos cometendo arbitrariedades, raramente são punidos. Costumam ganhar como "pena" uma aposentadoria precoce. Ou seja, geralmente são "punidos" com férias eternas e um ótimo salário pago por todos nós.
Já houve casos de juízes vendendo sentenças. Qual a extensão desse tipo de irregularidade ou crime, se considerarmos que são milhares de ações que tramitam em juízo, envolvendo, diariamente, enormes quantias? Teriam alguns juízes a necessária isenção para investigar seus pares ou o corporativismo falaria mais alto? Fácil imaginar o quanto de tráfico de influência pode transitar em decisões que, apesar de sustentações técnicas, podem esconder, às vezes, interesses muito particulares. Numa sociedade permeada pela corrupção, difícil imaginar que o Judiciário seja uma ilha distante e imune ao que acontece no país, onde parte de seus magistrados participa, inclusive, de festas com os donos de boa parte do PIB brasileiro volta e meia envolvidos em escândalos de corrupção ou negócios que terão que ser decididos em diferentes instâncias judiciais.
No Brasil, no entanto, onde a cultura da corrupção teceu fortes raízes, elege-se apenas meia dúzia para pagar a conta desse "banquete de justiça". Coincidência ou não, isso acontece justamente quando o Estado brasileiro passa a investir mais em políticas públicas que reduzem a desigualdade social. Que integrantes do PT envolvidos com corrupção precisam ser alcançados pela lei, nenhuma discordância. Assim como os do PSDB, PMDB, PP, DEM...
Mas esse é apenas o efeito colateral das investigações. O que, parece, se busca, é deslegitimar a vitória de Dilma nas urnas, porque o partido teria recebido dinheiro de empresas envolvidas na Operação Lava Jato. Pouco importa se o dinheiro foi legalmente declarado ao TSE. Ou se as mesmas empresas financiaram todos os principais partidos. O foco é o PT. Única e exclusivamente o PT. As exceções apenas disfarçam a regra.
Teriam alguns integrantes desse partido desviado mais recursos do que outros? Estaríamos, como querem os principais comentaristas de jornais, rádios, web e tevês, principalmente da Rede Globo, diante “do maior caso de corrupção do país”? Difícil dizer, porque não houve, no passado, empenho semelhante para investigar outros escândalos. E também porque agora, quando surge a oportunidade de retroceder a governos anteriores aos do PT, há um indisfarçável desinteresse. Tanto que a CPI da Petrobras, no Congresso, não aceitou estender as investigações para o período dos governos de FHC, embora o mesmo doleiro que denunciou o PT tenha dito que já havia corrupção na Petrobras em 1997.
O empresário Ricardo Semler, filiado ao PSDB, afirmou em artigo na Folha de S. Paulo (21/11/2014) que “nunca se roubou tão pouco” e que já nos anos 70 sua empresa deixou de fornecer equipamentos para a Petrobras porque “era impossível vender diretamente sem propina” . A empresa da qual é sócio também tentou fazer negócios nos anos 80, 90 e até recentemente, mas desistiu porque o esquema sempre foi o mesmo. Nos últimos 40 anos, disse ele, só mudaram os percentuais da corrupção, que “caíram”. Ou seja, na contramão do que boa parte das emissoras de rádio e tevê, jornais e web tenta induzir, a corrupção na Petrobras vem de longa data e já foi bem maior. Nem vamos imaginar o que pode ter ocorrido no período da ditadura, quando ninguém ousaria investigar algo semelhante.
Há, portanto, um indisfarçável show de cinismo e hipocrisia. A justiça, em tese, deveria ser igual para todos. Não é e não tem sido assim, infelizmente. Derrotado quem se quer derrotar, alguém tem alguma dúvida de que o zelo do Judiciário e as denúncias dos principais meios de comunicação não terão mais o mesmo ímpeto contra outros corruptos e corruptores? Isso já acontece neste exato momento, quando alguns notórios corruptos e corruptores são poupados enquanto outros são massacrados. Muitos desses cidadãos envolvidos em escândalos, aliás, participaram das manifestações sem que a mídia tentasse ao menos desmascará-los. É um jogo de aparências, de mais sombra ou mais luz conforme as conveniências da mídia e de outros atores interessados. O que a sociedade brasileira deveria exigir é a equidade no tratamento das investigações, seja da justiça, seja da mídia.
Resultado de uma deturpação de nossa democracia, graças a abusos que não são coibidos, os veículos de comunicação inverteram o principal alicerce do Direito: agora todos são culpados até que se prove o contrário. E basta divulgar nos meios de comunicação os nomes dos acusados para a população condenar, antes que seja concedido o direito de defesa. Resultado de anos e anos de um jornalismo sensacionalista, substituímos a democracia por uma midiocracia. De nada resolve dizer que a mídia não condena quando ela promove uma superexposição do(s) acusado(s), sem o mesmo espaço para a defesa. Se, depois, o Judiciário vier a absolver, como algumas vezes acontece, pouco importa. Os denunciados já foram condenados à execração pública para o resto de suas vidas.
Claro que os meios de comunicação são fundamentais ao exercício da democracia, desde que não se especializem – como ocorre, não raro, no Brasil – em dar sustentação a partidos de oposição ou de situação, conforme a conveniência, ou, ainda, para dar suporte ou desestabilizar governos que não atendam a seus interesses ou de seus "clientes" (os donos do capital). Pra quem confunde justiça com vingança, tá ótimo! E se alguém achar que não tem a mão da CIA e dos EUA em todos os movimentos de desestabilização de governos latino-americanos que não se alinharam com Washington, ganha um doce, por sua ingenuidade.
Portanto, combater a corrupção, sim. Derrubar um governo com um golpe jurídico-midiático (militar parece uma hipótese mais remota), para abrir caminho para os interesses de classe e das grandes potências, NÃO.
Aperfeiçoar a democracia, sim. Fazer do combate à corrupção, nas ruas, uma escada para a ascensão de grupos fascistas e totalitários, NÃO.
Punir com o mesmo rigor todos os que se envolvem em corrupção, sim. Eleger apenas alguns para pagar essa conta, NÃO.
Investigar e punir quem tem culpa em cartório, sim. Usar as investigações para quebrar empresas brasileiras que garantem milhares de emprego, NÃO.
Fazer manifestações contra os escândalos de corrupção (todos!!!), sim. Achar perfeitamente normal caminhar lado a lado com fascistas, sexistas, sociopatas, homofóbicos, religiosos fanáticos e pessoas que pedem intervenção militar e não respeitam os Direitos Humanos, NÃO.
Ir às ruas gritar contra a corrupção, sim. Utilizar-se de "jeitinhos” – bem brasileiros! – para obter vantagens para si, familiares, amigos ou parentes, NÃO.
Desejar um Brasil melhor (para quem, para quantos?), sim. Dissimular o ódio às transformações sociais com o álibi de combater a corrupção, NÃO.
Aceitar as regras da democracia e lutar para que os Três Poderes e a sociedade façam os ajustes necessários ao desenvolvimento do país e ao combate à corrupção, sim. Disfarçar preconceitos de classe para pedir a derrubada de um governo legitimamente eleito e que, com todos os defeitos, permitiu a ascensão das camadas mais pobres, NÃO.
Entre o sim e o não, caminharemos para um Brasil com menos desigualdade, mais Direitos Humanos, que reafirme a sua soberania diante dos interesses das grandes potências. Ou para um Brasil novamente (mais) excludente, concentrador de renda e subserviente aos poderosos donos do capital internacional, como quase sempre aconteceu, ao longo da história.
Combater a corrupção é fundamental, mas isso não pode servir como uma cortina de fumaça para permitir que as maiores conquistas sociais do povo brasileiro, atestadas por idôneos organismos nacionais e internacionais, sejam golpeadas por ações jurídico-midiáticas com o intuito de desestabilizar um governo e aniquilar os avanços obtidos nessa área nos últimos anos.
As consequências podem perdurar por décadas, como aconteceu com a ditadura, que ainda mantém influências na vida da população. E há risco de haver um grande retrocesso: político, econômico e social. Isso deveria ser o mais importante e conduzido com mais responsabilidade. A prisão de uma dúzia ou mais de pessoas não deveria ser feita sem medir as consequências, com os exageros apelativos de uma superexposição dos fatos na mídia, geralmente em tom sensacionalista, o que contribui para criar um clima de instabilidade e quase-histeria entre a população. Inclusive porque donos dos principais veículos de comunicação, dessa mesma mídia, e vários de seus colaboradores também estão envolvidos em um escândalo de contas secretas no HSBC na Suíça, fato que pode indicar crimes de sonegação, lavagem de dinheiro e informação privilegiada para auferir lucros no mercado financeiro.
A luta de classes, essa velha senhora – para usar a metáfora do momento –, está nas ruas, novamente. Pode ser que a maioria não saiba, mas é disso que se trata, principalmente quando a justiça e a mídia parecem operar com dois pesos e duas medidas.
Se antes eram as camadas mais pobres que tomavam as ruas para reivindicar direitos. Agora, majoritariamente, são as camadas de maior poder aquisitivo, que não aceitaram a quarta derrota eleitoral seguida e clamam por impeachment ou intervenção militar. Sim, há o álibi de “varrer toda a corrupção”, eu sei. E sei também que há muita gente bem intencionada, críticos de um mau governo. É possível encontrar cidadãos e cidadãs, com razão, indignados com um partido que elegera a ética como uma de suas bandeiras. Há também muitos ingênuos e desinformados, incapazes de perceber outras intenções por trás de quem lidera os protestos. E há, ainda, não poucos, querendo enganar a outros ou a si. O que sei, também, é que o jogo que se joga neste momento é bem maior do que o necessário e desejável combate à corrupção.
Cidadãos e cidadãs estão convidado(a)s a assumirem suas responsabilidades nessa jornada por um Brasil melhor. Mas é preciso definir desde já: melhor para quem, para quantos? O combate seletivo e parcial à corrupção, com ares de solução para todos os males, é apenas pretexto para ocultar onde se quer chegar. A luta de classes está aí, mais viva do que nunca.
Que tenhamos boa sorte!
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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
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