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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Caixa de surpresas


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Na área de embarque do aeroporto de Quito, entramos numa livraria e procuramos a estante de Rosa Montero, à época bem menos conhecida e traduzida no Brasil. Faz uns doze anos. Cada uma de nós três comprou um livro diferente, com o acordo de fazermos um rodízio deles. Não lembro qual era o meu. Sentamos à espera do nosso embarque, folheando os livros novos. O título do que a colega ao meu lado havia comprado me chamou a atenção e pedi para vê-lo. Era "A louca da casa", que começa com uma instigante e divertida reflexão sobre a memória, tanto a individual como a compartilhada entre pessoas, por exemplo, da mesma família. Fala da construção que cada um faz dos fatos e situações vividas, tornando-as únicas, e das enormes discrepâncias entre os registros que individualmente fazemos de um mesmo episódio. Não consegui largar o livro e nunca o devolvi à sua dona.

Dado que a memória não é absoluta, muito menos objetiva, sendo, portanto, inútil buscar nela a verdade dos fatos, fica fácil entender a diferença entre o que sempre lembraremos e o que nunca esqueceremos, nuances sujeitas, em larga medida, aos sentimentos que associamos ao que nos acontece. E lembranças não pedem licença.

Durante as férias na fazenda, que eu detestava mas nunca consegui driblar, a solidão era a minha melhor amiga. Se fosse no meio do ano, a colheita do milho verde me dava algumas alegrias, como o curau, um dos doces preferidos, e o dia de pamonha, que era um acontecimento. Sacos enormes de espigas eram colocados na varanda de trás da casa e um grupo de umas dez mulheres se organizava para a trabalheira. Descascar e limpar as espigas cuidadosamente, de maneira a preservar a palha o mais inteira possível, ralar o milho em grandes ralos feitos de folhas de latas de óleo de vinte litros furadas com pregos, costurar à máquina bolsas com as folhas de palha, que receberiam a massa de milho verde, amarrar as bolsas cheias com finas tiras da mesma palha, ferver panelões de água e neles cozinhar as pamonhas. E eu ali no meio, ralando milho verde horas a fio e aprendendo o mundo daquelas matutas no conversê que nunca parava e era pura diversão. Era muito transparente o ar nos dias de inverno na roça.

Assim, passou-me voando pela cabeça a cena do grupo ralando o milho verde, enquanto eu escrevia o primeiro parágrafo. Que emendei, por razões insondáveis, com o relato do escritor chileno Antonio Skármeta sobre sua paixão adolescente pela Dalva de Oliveira. Nossa grande estrela do rádio excursionava pelo Chile, e o rapaz de quinze anos foi assisti-la. Saiu em êxtase, teve febre, insônia, inapetência, até descobrir onde a sua deusa estaria e ir até lá, levando um ramalhete de rosas, que lhe custou a mesada inteira. Dalva se comoveu com aquela aparição e, não sendo nada boba, sacou a fornalha que o consumia. Deu-lhe um beijo e lhe escreveu na capa de um disco: "ao meu único amor chileno". Queria que você visse a expressão dele contando a história. Emende aí à vontade.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

3 comentários:

Carlos Augusto Medeiros disse...

O livro era "A história do rei transparente".
Abraços,
Carlos

Anônimo disse...

Resgatar as filigranas do baú da felicidade realmente não corresponde à realidade dos fatos.Cada um interpreta a vida a seu modo peculiar.
Parabéns pelo bela ilustração do Fernando e pelo texto claro da Júnia.
Bjs da Mummy Dircim

Anônimo disse...

Ai que delícia pamonha com beijo adolescente.
Beijos castos
Liane

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