por Fernando Evangelista*
No colégio-católico-apostólico, o professor de redação, culto e sisudo como um lorde inglês, disserta sobre enredos, personagens e elipses. É uma segunda-feira de ventania, raios e trovões. Há algo de cinematográfico nessas tempestades.
Apesar do dilúvio, a aula prossegue sem grandes imprevistos ou complicações. E então a porta se abre: “Professor, desculpe interromper” – diz uma voz feminina, “eu gostaria de fazer uma pergunta para a turma. Posso?”
É a professora de artes, recém-contratada. Bonita e misteriosa, vestindo sempre roupas leves e esvoaçantes, mesmo em dias frios, ela seria descrita pelo meu tataravô Córis, corsário poliglota, como um “pezzo di gnocca”.
- Alguém perdeu alguma coisa? – pergunta a mulher.
A turma faz cara de ponto de interrogação, como quem diz sem dizer: do que você está falando? Perdeu o quê? Onde? Quando? A princípio, ninguém sente falta de nada e a morena vai embora.
A morena vai, mas a pergunta fica. Prevendo que o falatório acabaria em desordem, o professor desafia os alunos a escreverem um texto curto, respondendo à pergunta: O que você perdeu?
Isso aconteceu em 17 de agosto de 1987.
Eu era um dos alunos e cursava o ensino fundamental. Lembro-me do fato e do dia porque guardei o texto e, principalmente, por causa de uma coincidência estranha. Transcrevo a composição com alguns retoques de estilo e com as vírgulas nos seus devidos lugares:
Perdi muita coisa na vida. Perdi um rolimã, várias pipas, um álbum de figurinha da seleção brasileira de 1982, dois jogos do Atari, uma mochila de escoteiro, a chave de um baú, que vai ficar eternamente fechado, um autógrafo do Zico, maior herói brasileiro de todos os tempos. Perdi a paciência com a minha irmã e acertei-lhe um violão na cabeça. Perdi um amuleto da sorte, que só me dava azar, e duas cartas da Eliza, minha primeira namorada. Primeira e única, registre-se. Por enquanto, registre-se isso também. Perdi ainda duas amígdalas e um apêndice.
A coincidência vem agora. Naquele dia, a pedido de minha mãe, eu havia ido à biblioteca da escola à procura do recém-lançado O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Mas peguei por engano um chamado A Rosa do Povo, do Carlos Drummond de Andrade, de quem nada sabia, apenas que tinha sido expulso de um colégio de padres na infância, acusado de “insubordinação mental”, o que lhe garantia um lugar de honra no meu pantheon imaginário.
Para parecer culto e sensível e ganhar elogios do professor, citei um verso que encontrei no livro do poeta. O verso falava sobre perdas.
Naquela noite, montando um quebra-cabeça no tapete da sala de estar, assustei-me quando ouvi a musiquinha do Plantão da Globo, prenúncio de todas as tristezas e tragédias dos anos 80. Sérgio Chapelin anunciou: “Carlos Drummond de Andrade, maior poeta brasileiro de sua geração, morreu às 20h45 desta noite, de insuficiência respiratória, exatamente 12 dias depois de enterrar sua única filha. Drummond tinha 84 anos”.
Foi só uma coincidência, obviamente, mas gostaria que não tivesse sido. Seria bom acreditar numa ligação entre o poeta e aquele menino franzino e assustado, metido a filósofo, apaixonado por morenas e vestidos esvoaçantes.
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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato. Da série Republicando.
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