Después de ver como se mueven las guerras y las guerrillas tu crees que le voy a tener miedo a tu pandilla? (Adentro – Calle 13)
Tomei um ônibus em El Salvador para uma longa viagem até a Costa Rica, atravessando quase todo o istmo centro-americano, na madrugada deste último 28 de julho. Durante todo o trajeto de 20 horas, interrompido pelas descidas obrigatórias fronteiriças, pensava nas impressões das duas últimas semanas que passei no “pulgarcito de América”, logo de sete anos sem visitar a terra paterna, e na necessidade de escrever sobre a sensação de paranoia que testemunhei entre os conterrâneos.
Pequenos, e significativos, exemplos do cotidiano: andar armado no país resulta quase óbvio, e em qualquer estabelecimento comercial, qualquer mesmo, desde uma farmácia até uma sorveteria, haverá dois seguranças com o armamento bem visível no intento de intimidar. Durante um café, numa reunião acadêmica, no jantar familiar com pupusas, os tópicos de conversa, naturais e quase banalizados, são constantes: o perigo, o medo, a morte. Jornalistas, poetas, professores do país escrevem sobre assassinados e decapitados. O sangue está nas artes, nas mentes e no ar salvadorenho. E nesse estado em que se encontra o país de Roque Dalton, a mobilidade é uma questão-chave. Se você não tiver carro, você está sob um risco ainda maior do que se o tivesse. Todos temem parar num semáforo em qualquer hora do dia e mover-se a pé, mesmo em curtas distâncias, também vai seguido por constante sensação de insegurança, ao ponto de as pessoas terem receio de parar para dar informação para quem simplesmente pergunta por uma localização. A desconfiança é generalizada.
Temem-se, porém, ainda mais ônibus. Precária, para não dizer patética latas-velha, a frota de ônibus do país, controlada por consórcios de empresários infiltrados e sequestrados pelo crime organizado, são alvos diários de assaltos aos passageiros e de extorsões aos motoristas. A verdade é que El Salvador funciona sob um toque de recolher tácito. Na própria região metropolitana, a maioria das linhas desses cacos ambulantes que chamam de transporte público tem suas últimas viagens às 19h! Ainda se encontram algumas rotas até pouco passado das 20h, e muito raramente às 21h, horário em que apenas os mais bravos, e/ou sem outra alternativa, atrevem-se a subir.
Pais mais zelosos literalmente proíbem os filhos de fazerem suas atividades do dia-a-dia em ônibus, preferindo sempre pagar caro por um táxi. Saídas de lazer e entretenimento, tão corriqueiras como ir ao cinema, são absolutamente estritas a um detalhado planejamento sujeito a boas companhias e esquemas de mobilidade, que significa dispor de um taxista de confiança com horário da corrida previamente arranjado, porque nem o taxista vai a qualquer lugar nem a qualquer hora por uma corrida, nem o passageiro aborda qualquer táxi que cruza pelas ruas. Ninguém confia em ninguém, salvo pelos fortes laços familiares e de amizade, duramente cultivados e celebrados. A sociedade salvadorenha vive encarcerada em si mesma.
Enquanto reflito sobre tudo isso – que é uma conjuntura piorada mas semelhante à que vivi morando em El Salvador, em 2008 – mais um choque de uma realidade em curto-circuito: no mesmo do dia em que viajei, o país amanheceu com a notícia, que é sintoma não de um processo mental paranoico e sim de uma realidade quase surreal, da proibição da circulação do transporte público por ordem dos líderes das forças do crime organizado (as chamadas “maras”, forma coloquial para o espanhol pandillas) Barrio 18, Mara Salvatrucha, e a mais recente, 18 Revolucionários – um racha da primeira e que já se consolidou com a terceira força criminosa do país.
A paranoia fundamentada
Não foi a primeira vez que as pandillas desestabilizaram El Salvador. Em setembro de 2010 ameaçaram com chamadas telefônicas, agressões nas paradas de ônibus e folhetos aterrorizantes entregues de mão em mão. Dessa vez, os mareros não apenas ameaçaram, mas executaram logo de saída nove motoristas, e os empresários e os funcionários suspenderam completamente o serviço. O país parou. Até 31 de julho, o boicote e/ou a sabotagem resultaram em nove motoristas assassinados, centenas de unidades de transporte paralisadas e várias incendiadas, serviços hospitalares comprometidos e aulas canceladas, milhares de salvadorenhos amontoados em precários veículos clandestinos e viajando sob custódia policial e militar. Imediatamente à ação das maras, o governo salvadorenho colocou 600 efetivos militares nas unidades de transporte do país para somar-se aos já 7.500 soldados que estão diariamente nas ruas em atividades de segurança pública, como parte da verdadeira atitude de guerra que existe hoje no país entre o governo e as pandillas.
Logo de cinco dias de estado de emergência no país, 90% das rotas de ônibus havia voltado às atividades, mas o ministro de Segurança, Benito Lara, manteve o estado de emergência e a militarização do cotidiano. O emprego das Forças Armadas na segurança pública já é uma praxe na América Central, e excede em muito, e cada vez mais, sua implementação como uma política pública dita necessária. Esta “semana del paro” em El Salvador que o diga. Os números, porém, são de guerra não apenas no território cuzcatleco: em Honduras, 2.000 soldados das tropas do exército estão nas ruas; na Guatemala, são 4.500 soldados e, em El Salvador, além dos mais de 7 mil soldados no cotidiano, e outros 600 convocados pela emergência do transporte, foram suspensas as licenças da Polícia Nacional e o efetivo total chamado chega a 23 mil agentes.
A realidade institucional de El Salvador hoje é de extrema polarização entre as mesmas forças políticas que há 30 anos também se enfrentavam, mas sob hostilidade bélica: a ARENA, Alianza Republicana Nacionalista, reduto da uma direita conservadora e reacionária, e a FMLN, a ex-guerrilha Frente Farabundo Marti de Liberación Nacional, convertida em partido político como parte dos Acordos de Paz alcançados para barrar a sangrenta guerra civil que durou de 1980 a 1992. Além da “paz”, a diferença é que logo de 20 anos ininterruptos de ARENA no governo, hoje é a FMLN quem dirige o país. Isso leva a muita especulação sobre a possibilidade de que as pandillas tenham sido partidariamente instrumentalizadas para causar desgaste político.
O poder pandillero
Atuando praticamente como uma terceira grande força política no país, as pandillas já obtiveram capacidade de articulação conjunta, apesar da mortal rivalidade entre elas, como na “trégua”, até hoje não reconhecida pelo governo salvadorenho, pactuada com o Poder Executivo entre 2012 e 2015, e que resultou num período de inegável diminuição dos homicídios na pequena nação assolada pela cultura da violência. Portanto, o ocorrido nessa semana em El Salvador, histórica desde várias formas de análise, é uma potente demonstração de força dessas gangues, e uma forma de buscar ser ouvidos, num contexto sem precedente de repressão contra elas.
Os governos da ARENA implementaram, e foram muito criticados por isso, os planos Mano Dura e Super Mano Dura, para combater as pandillas. Não conseguiram barrar sua expansão e serviram para sua evolução. A estratégia atual do governo é de impor ainda maior peso repressivo. Parece que as gangues quiseram demonstrar que, mesmo com todo o atual investimento em operações militares policiais, sua capacidade para desestabilizar a sociedade se mantém, e assim o fizeram.
O prestigioso periódico digital salvadorenho El Faro cita os dados oficiais sobre o atual tamanho do fenômeno em El Salvador: 60 mil membros, que junto com seu entorno social (colaboradores, simpatizantes, família), chegam a meio milhão de salvadorenhos, ou 8% da população do país. O caminho único da repressão dá mostras de ser inviável, pois as pandillas têm suas origens no agoniante processo social desigualdade-migrações-deportações-violência que configura a própria sociedade salvadorenha. Em muitas comunidades e bairros do país, a figura do pandillero é uma referência de sucesso que faz com que cada vez mais jovens, com famílias desagregadas pela migração, em condição de pobreza, sem perspectivas e profunda precariedade estrutural diante da ausência do Estado, queiram incorporar-se.
A atualidade da tragédia salvadorenha é particular pelo absurdo que a situação dessa semana representou, mas análoga pelo menos nesses países do chamado Triângulo Norte da região centro-americana: El Salvador, Guatemala e Honduras. Enquanto assistimos ao recrudescimento das grandes tensões geopolíticas de âmbito global, representado, entre outros, pelas guerras na Ucrânia, pelas reações do radicalismo islâmico no Ocidente e pela desintegração da experiência europeia a partir da humilhação grega, há no nosso próprio continente uma longa e arrastada crise que se visualiza num dramático mosaico de conflitos sociopolíticos – entre as causas mais recentes, destaca-se a violenta espoliação promovida pelo capitalismo neoliberal na região – que atentam contra a própria dignidade humana e flertam com o caos no “invisível” espaço centro-americano. Nem quando toma proporções de grotesco, como nesse momento, o tema é abordado pela mídia corporativa tradicional em nível internacional, e no Brasil em particular, ainda tão alheio à América Latina em geral.
A Organização das Nações Unidas considera o Triângulo Norte como a região mais violenta do mundo há vários anos. Mas a violência na América Central não é apenas um problema social, senão um desastre político que consome todos os dias e ininterruptamente a carne, o espírito e a sobriedade mental dos centro-americanos, talvez com densa particularidade em El Salvador, epicentro da organização das pandillas que ocuparam quase todo o istmo e com representações organizativas e laços de origem na Europa e na América do Norte. Como assinala o jornalista basco Unai Aranzadi, citado por Andres Ramirez no site brasileiro especializado em América Central, O Istmo, “analisando a realidade a partir do território, e de uma perspectiva histórica, quiçá seria mais justo qualificar esta sociedade de violentada. Desde o genocídio do mal-chamado 'descobrimento', até o estabelecimento do neoliberalismo, a América Central tem sofrido terrivelmente, e não é coincidência que fenômenos ultraviolentos aparentemente únicos e desprovidos de ideologias, como, por exemplo, as maras tenham surgido nesse espaço e nesse tempo”.
Há paranoia, particularmente, em El Salvador, mas quem poderá dizer que sem fundamento? Não é raro, e se fez ainda mais comum durante esses dias, ouvir que o país voltou ao estado de guerra de 30 anos atrás, com dinâmicas sociais típicas daquele período. Mas as novas gerações não conhecem apenas dois grupos em conflito, senão um medo generalizado e permanente atravessado em várias esferas do cotidiano. E retroalimentado constantemente pelos meios de comunicação. As capas dos principais jornais do país diária e sistematicamente apresentam manchetes e fotos sobre crimes e conflitos realizados pelas gangues.
No passado recente, a luta armada foi entendida por certos setores da sociedade como a única forma de serem ouvidos diante do fechamento de espaços políticos. Hoje as pandillas são protagonistas de uma guerra social e através da força cada vez mais se fazem atores políticos que exigem que os governos as escutem. Como consequência, a epígrafe utilizada na abertura desse texto, uma frase de uma canção da dupla porto-riquenha Calle 13, ao tempo que é um estímulo a resistência, tem cada vez menos ressonância na realidade salvadorenha. O povo salvadorenho conhece como poucos todos os comportamentos, as dores, e os arrasos de uma longa hostilidade bélica entre grupos confrontados, mas hoje está cada vez mais sufocado, temeroso e refém da sua realidade gerada pelo próprio pós-guerra.
Aleksander Aguilar é jornalista, linguista e doutorando em Ciência Política. Coordena a plataforma-rede O ISTMO (www.oistmo.com)
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