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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 9 de janeiro de 2010

Filosofia de bar sobre Copenhague



(Para ler de um gole só)



A degradação do meio ambiente é filha legítima do progresso, e o progresso é uma construção ideológica. Os seres humanos tendemos a pensar no progresso apenas como o progresso de nossas capacidades técnicas, talvez porque a ciência tenha sido a área em que mais progredimos ao longo da história. Mas o progresso não se resume a vacinas, aviões, usinas e tecnologias de ponta. Esta são apenas algumas de suas múltiplas facetas. Há muitos outros tipos de progresso, porque, uma vez representante da ideia de evolução, ele se espalha pelas demais searas do conhecimento humano. O erro das modernas sociedades ocidentais é acreditar que o progresso em apenas uma área do saber significa automaticamente o progresso de toda a humanidade. O nazismo é o grande exemplo. O regime de Adolf Hitler combinou um vigoroso progresso tecnológico, econômico e industrial com a maior expressão de degradação moral que o ser humano já viu sobre a face da Terra. Na Alemanha nacional-socialista, a racionalidade foi utilizada para azeitar o aparato militar do expansionismo hitlerista e exterminar judeus, negros, ciganos e homossexuais em massa. Os campos de concentração tinham a eficiente logística das mais exitosas empresas do capitalismo industrial. Depois, na esteira da segunda guerra, veio a bomba atômica, outra expressão de como o progresso da ciência foi utilizado para fins no mínimo duvidosos. Assim a história humana foi avançando. Os cientistas, com cada vez mais domínio sobre as pesquisas e a técnica, não param jamais de aperfeiçoar os avanços do conhecimento. Inventaram também máquinas de matar com precisão cirúrgica, inteligentes, que reduzem a zero o risco de vida dos matadores ao mesmo tempo em que aumentam a exatidão dos ataques. A ciência também serviu à manutenção da vida, claro. Se hoje vivemos 70 anos em média é porque a medicina consegue combater doenças que antes matavam todo mundo em idades bem menos avançadas. Desenvolveram até medicamentos para o combate à Aids, que mais parecia o demônio encarnado nos anos 80 e 90. Só que os laboratórios se recusaram a vendê-los a preços acessíveis às pessoas que mais sofrem com a doença: os africanos. O dinheiro fala mais alto, sempre. E o progresso parece reduzido às limitações morais das contas bancárias. O altruísmo só vale a pena quando é lucrativo. Os culpados nem são os laboratórios, porque o que fazem é somente seguir as regras do jogo. Se não lucram, não sobrevivem. Se são bonzinhos demais e distribuem os medicamentos, não terão dinheiro para pagar equipamentos e pesquisadores capazes de desenvolver remédios cada vez melhores. Estão apenas trabalhando, assim como todas as indústrias que emitiram e continuam a emitir bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera. Estão seguindo as regras do capitalismo. E o capitalismo diz: maximize os lucros – e faça isso antes de seu concorrente, senão... Por isso, o que conhecemos como crescimento econômico, na verdade, é o crescimento da exploração. Cresce uma economia que acumula mais. Para acumular, é necessário lucrar. O lucro se torna realidade quando um empresário – o dono dos meios de produção – fatura mais do que gasta. Quanto maior o faturamento e menor os gastos, mais lucrativo será o negócio. Mão-de-obra, equipamentos e matéria-prima são as principais despesas da atividade econômica. Se o patrão puder gastar menos com elas, ganhará mais no fim do mês. Essa economia se traduz em baixos salários e matérias-primas baratas. As matérias-primas normalmente se originam dos países pobres ou em desenvolvimento. Para obtê-las, a não ser que as reservas se encontrem em regiões desérticas, é necessário degradar o meio ambiente e desmatar. Voltando para a indústria em si, a redução de emissões depende de um investimento massivo em tecnologias limpas. Isso custa e, portanto, reduz o lucro dos patrões. O protocolo de Kyoto tentou fazer com que a redução de emissões se transformasse num negócio lucrativo e inventou o mercado internacional de carbono, uma espécie de bolsa de valores ecológica. Nela, quem deixa de poluir a atmosfera pode vender “direitos de contaminação” a quem ainda não conseguiu cumprir as metas de redução de emissões. O mecanismo só funciona porque, a cada ano que passa, esses direitos ficam mais e mais caros. A ideia é que a compra da licença para poluir um dia fique mais cara que o investimento em novas tecnologias não poluentes. Assim, através das leis do mercado, as indústrias deixariam de emitir gases causadores do efeito estufa. Não é uma questão de salvar o ambiente, mas de causar menos prejuízo financeiro. De qualquer forma, os Estados Unidos não assinaram o protocolo. Agora, com o fiasco de Copenhague, o preço do carbono no mercado internacional despencou. Isso quer dizer que ficou mais barato poluir, porque, como o capitalismo financeiro vive de expectativas, e as expectativas sobre um acordo salvador do clima foram para o bebeléu, os direitos de contaminação ficaram mais baratos. As licenças para emissão na União Europeia caíram 8,7% porque já não parece haver estímulos para investimentos nesse negócio de salvar o clima. Portanto, quem deixou de emporcalhar a atmosfera vai ganhar menos com isso, e quem continua mandando ver no CO2 vai perder menos, porque vai pagar menos por cada tonelada emitida para além da meta. O protocolo de Kyoto em si já é uma abstração financeira imensa elaborada para viabilizar dentro do capitalismo uma obviedade ambiental tão evidente quanto evitar o aquecimento global, o desaparecimento de ilhas, ecossistemas, culturas e meios tradicionais de vida. E, mesmo prevendo lucros consideráveis para quem entrar na onda da preservação, não colou como deveria colar. É, até hoje, o único sistema cujo objetivo é reduzir as emissões de carbono. Se nada for inventado para substitui-lo nos próximos dois anos, quando perde a validade, o mundo simplesmente ficará sem nenhuma meta de redução. Era para Copenhague ter elaborado outro mecanismo, mas isso não aconteceu porque ninguém está a fim de perder dinheiro. Uma política de cortes na emissão de CO2 dentro do capitalismo implica necessariamente em diminuição de lucro. Até nas prateleiras dos supermercados dá para perceber que é assim. Os produtos orgânicos, ecologicamente corretos, que não utilizam agrotóxicos nem organismos geneticamente modificados, que são produzidos com o mínimo impacto possível sobre o meio ambiente e que aplacam o sofrimento animal custam bem mais caro. Por quê? Ora, porque a produção é obrigatoriamente baixa para manter os padrões ecológicos. Se a atividade se massifica, vai acontecer igual acontece agora com os alimentos tradicionais: quanto maior a produção, mais barato o produto; quanto mais hormônio e mais veneno, maior a produção, maiores as vendas, porque os compradores priorizam matérias-primas mais baratas para baratear seus próprios produtos e vender mais e... bom, a gente já sabe como funciona. Copenhague fracassou basicamente porque há um desnível social e econômico entre os países desenvolvidos e emergentes. O pessoal do primeiro mundo não quer perder o padrão de vida, e a galera do terceiro mundo quer melhorar seu padrão de vida. O desenvolvimento é uma necessidade para as nações que estão no sul do mundo. Afinal, as coisas não podem continuar como estão: situações alarmantes aqui, fome e analfabetismo, e conforto lá. Temos que melhorar as condições de vida de nossas populações, de maneira que, pelo menos, as necessidades básicas de todos sejam atendidas. E não se trata de carros importados e casas na praia, mas de saúde, educação, alimentação, moradia, trabalho, ócio, liberdade. Aí vem outro problema. Nossa visão de mundo ocidental acredita piamente que desenvolvimento social é uma consequência do crescimento econômico, como se sem este não houvesse aquele. Então voltamos ao começo da conversa: crescimento é acumulação, e acumulação se viabiliza pelo progresso das forças produtivas. Nossa ideia de progresso está viciada. A evolução da humanidade vai muito além da evolução do PIB. Foi buscando desesperadamente taxas cada vez mais altas de crescimento do PIB que acabamos esquecendo de perseguir metas de desenvolvimento humano. Olha o Brasil: está entre as dez maiores economias do mundo, mas ocupa apenas a 75a posição quando o assunto é o bem-estar de seus cidadãos. Não podemos dizer que o país não cresce, mas para onde esse crescimento tem nos levado? O crescimento, em si, é um mito, assim como a ideia de que o progresso é a salvação do ser humano porque é infinito e um dia nos levará à perfeição. Como podemos acreditar na conversa de que nossas economias continuarão crescendo e crescendo ad eternum se os recursos naturais são finitos? Existe uma grande incoerência aqui, e todos os negociadores que estavam sentados nas mesas de Copenhague a conhecem perfeitamente. Não há mundo capaz de aguentar um ritmo de crescimento de dois dígitos ou a promessa de que, um dia, todos irão viver como na Europa e nos Estados Unidos. Ou começamos de uma vez por todas a conquista espacial e pilhamos os recursos naturais dos outros planetas para alimentar nossa loucura progressista ou mudamos de ideia de uma vez por todas. Hoje a riqueza é sinônimo de degradação ambiental, porque é explorando a natureza que o homem transforma matérias-primas em produtos industrializados e ganha dinheiro no processo. Quanto mais matéria-prima, mais transformação e mais dinheiro. Explorar a natureza – extrair petróleo, minérios, madeira, construir pastos e plantar soja – gera riqueza porque foi assim que decidimos fazer girar a economia quando, um belo dia, nos apartamos do meio ambiente e resolvemos declarar guerra ao ecossistema. Acabamos por dominar seus ciclos e conhecê-lo quase tão profundamente que hoje podemos dizer que vencemos. Somos os donos do mundo, dominamos cada rincão da Terra e temos nas mãos o poder de acabar com tudo, ainda que o fim de tudo seja também o nosso fim, porque, por mais que neguemos, somos parte da natureza e não vivemos sem ela. Eis a prova de que a ideologia que sustenta o progresso e o modelo econômico é uma grande falácia. Nós não somos sem o todo, mas o todo sim pode ser sem a gente. Somos o último elo da cadeia e o mundo não vai se abalar caso desapareçamos de repente. Pelo contrário, a natureza agoniza com a nossa presença. Copenhague não colheu nenhum fruto maduro porque está atolada em interesses mesquinhos que dizem respeito a metas de crescimento do PIB, atividade industrial e dominação militar. Mas estes são valores do velho mundo. O novo mundo deve ser erigido sobre novas plataformas, a mudança deve demolir os alicerces das sociedades atuais e muita gente que hoje se dá bem pode se dar mal. As noções de conforto e bem-estar deve ser redefinidas, mas o xis da questão está no conceito de riqueza. Somos ricos enquanto destruímos hectares de floresta, poluímos fontes de água límpida e extinguimos espécies animais e vegetais para extrair toneladas de ouro e guardá-lo nos cofres do Banco Central? Isso já não faz o menor sentido. A verdadeira riqueza está em viver num mundo em que não haja miséria, e só não haverá miséria quando não houver degradação. A exploração da natureza é o pontapé inicial de toda a desigualdade, e se engana quem pensa que justiça social é possível sem justiça ambiental, porque o homem construiu todo seu aparato de dominação submetendo o meio ambiente – e, consequentemente, os outros homens – a seus desígnios. Nenhum chefe-de-estado quer tocar nestas feridas abertas, porque são nelas que se escondem os nervos expostos da nova ordem mundial.



Tadeu Breda é jornalista, colunista do Nota de Rodapé e vive em Latitude Sul

Um comentário:

Moriti disse...

Maravilha de texto, Tadeu. Muito descritivo sobre a inversão de valores imposta pelo sistema capitalista.

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