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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Tempo desperdiçado

Tenho lido e ouvido muitas análises otimistas do segundo turno. Mas me parece que, ao contrário do que prometem essas análises, nada garante que o tempo que o país ganhou para o debate de ideias, valores e propostas administrativas, será aproveitado para favorecer um voto mais amadurecido na nova rodada. São maiores as possibilidades de que esse tempo continue sendo desperdiçado em denúncias e contradenúncias, em manobras e contramanobras, como ocorreu no primeiro turno. Consideremos, por exemplo, o que aconteceu e continua acontecendo com a questão do aborto, tão séria e crucial para milhões de mulheres: virou chantagem de católicos, evangélicos e espíritas conservadores, explorada pelas campanhas tanto de Serra, quanto de Marina. E todos os candidatos mais votados, inclusive Dilma, recuaram da maneira mais covarde das opiniões e posições que haviam manifestado anteriormente. O episódio me trouxe à lembrança o que se fazia com a questão do divórcio nos anos 1950. Com a agravante de que, agora, existe a praga dos marqueteiros.
O empenho generalizado, portanto, é para despolitizar as disputas e campanhas e para cortejar as opiniões mais conservadoras – por definição majoritárias, enquanto não se forja com luta e sacrifício um novo consenso social. Essa despolitização é uma decorrência da hegemonia do liberalismo e do neoliberalismo, por mais dissimulada que ela seja, o que, aliás, é próprio de visões do mundo hegemônicas, que não precisam afirmar-se explicitamente: “naturalizam-se”. Liberais e neoliberais sempre sonharam com uma democracia sem povo, tanto na luta remota contra o absolutismo, quanto na luta contemporânea contra as diferentes versões de autoritarismo. Liberais e neoliberais sempre foram contra as ditaduras que os excluem, por um lado, e contra a participação popular, por outro, sobretudo se consciente e organizada. Já repararam como eles insistem em acabar com a obrigatoriedade do voto, para que se amplie ainda mais a abstenção política e se facilite o controle das decisões pelos representantes do capital? Liberais e neoliberais, do alto de sua suposta sabedoria política, não conseguem sequer enxergar em fenômenos recorrentes – como a escandalosa votação de Tiririca – uma forma grotesca, mas real, de protesto de larga camada popular, descrente desse tipo de política que a marginaliza e revoltada, inclusive, com as críticas superiores e elitistas a sua escolha pré-política.

Duarte Pacheco Pereira é jornalista, foi vice-presidente da UNE em 1964 e dirigente nacional da Ação Popular (AP) de 1965 a 1973, obrigado a viver e atuar clandestinamente durante 11 anos. Lançou recentemente o livro 1924: O diário da revolução – Os 23 dias que abalaram São Paulo.

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