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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 12 de março de 2012

“Toda Carta de Amor…”

À Organização do Concurso Literário “Toda Carta de Amor…”

Prezados,
Segue meu trabalho.
Atenciosamente,
H.M.S


Maía,

Sensato seria escrever apenas: Feliz aniversário, te desejo o melhor. E te enviar essa mensagem insossa, como se eu tivesse me lembrado de você hoje meio sem querer e, por gentileza, me dei ao trabalho de te mandar uma linha de parabéns.

Não. Sensato, mesmo, seria não te mandar nada. Fingir que consegui o que há tanto tempo busco: não pensar em você por um dia. Vinte e quatro horas sem que uma palavra, uma música, um cheiro, um lugar, a fruta que você sempre tinha na bolsa, o poeta que você tanto gostava… digo, sem que nenhum desse (e de muitos outros) fantasmas, nem em sonho, me assediem.
Você acha que é pedir muito?

Em realidade, muito mais sensato, mais correto, seria que eu ou você não estivéssemos naquela noite – ou que aquela noite simplesmente não tivesse existido. E que se tivesse existido, eu não tivesse te procurado. E que se eu tivesse te procurado, você nunca tivesse me respondido. E que eu nunca tivesse colocado a mão no teu ombro, e ainda que eu tivesse feito isso você nunca, jamais, tomasse a minha mão.

Lembra aquele acidente em que dois aviões se chocaram em pleno ar, na Amazônia? Foi isso que aconteceu com a gente. Soma de um erro enorme e muito azar. Alguns metros mais ou menos e cada um seguiria seu caminho sem um arranhão. Mas aconteceu. Você passou por ali, eu cruzei o teu caminho (talvez tenha sido o contrário) e veio a colisão. Mas você, como aquele avião menor, seguiu seu rumo, sem talvez saber muito bem o estrago que fez, sem saber que derrubou o outro (que segue no chão).

Se pelo menos hoje fosse sábado eu sairia com meus amigos, encheria a cara, falaria de amenidades e por alguns instantes esqueceria essa história. Mas não, ainda é terça-feira, e hoje a desculpa para pensar em você é que é seu aniversário. Mas amanha não haverá aniversário, não haverá desculpas e os fantasmas seguirão me torturando.

Como tantas outras, esta carta ficará em cima da mesa e nunca verá um envelope. Porque a única mensagem que eu queria mesmo te mandar era uma que dissesse: “conheci uma mulher incrível, linda, doce, inteligente e que me ama”. Tenho medo de que essa carta, como todas as outras, nunca chegue a ser enviada.

Se pelo menos esta carta servisse pra alguma coisa, talvez pra ganhar um concurso literário. Mas não, não vai servir, porque nela há tanta verdade que parece ficção.
Kike

Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.

4 comentários:

Fernando Evangelista disse...

Ricardo, a Espanha está te fazendo bem. Estás cada dia mais inspirado. Texto lindo, sensível, poético e, acima de tudo, muito bem escrito e sincero. Vou imprimir e guardar.

Fernanda Pompeu disse...

Ricardo, adorei a imagem que compara o encontro de dois amantes com a trombada de dois aviões! Texto muito legal!

Anônimo disse...

Bonito, bonito, bonito! gostei muito, parabéns. Fausto Negrieri, SP

Amanda Felix disse...

Sem palavras. Estou aqui, escrevendo uma carta assim, que também nunca vai ser enviada e, de repente, entro nesta página e me deparo com esse texto. Tão bem elaborado, tão real. Adorei!

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