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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 17 de maio de 2012

rio-niterói

Hoje as barcas que fazem a travessia Rio-Niterói, pela esplêndida baía de Guanabara, têm pouco a ver com as embarcações que faziam essa mesma travessia quarenta anos atrás. As atuais são mais confortáveis, ligeiras, e algumas têm até serviço de café expresso com bolinhos de chuva.

As que eu carrego na memória tinham bancos de madeira, além de mais pesadas e lentas. De alguma forma eram mais "primitivas" ou mais "selvagens". É claro, o serviço então não tinha concorrência (a alma do negócio para o consumidor), pois não existia a ponte de 13 km de asfalto ligando as duas cidades.

O fato é que fiz a travessia Rio-Niterói por um ano ininterrupto. Era 1970, com o Brasil fechado. Falava-se baixo, escrevia-se e lia-se por metáforas e entrelinhas. Comungava-se um temor tremendo dos militares, da polícia, do Estado. Os que não liam nada, pouco temiam e viviam numa quase total ignorância política e de direitos.

De maneira que os quase trinta minutos gastos na travessia eram uma espécie de tempo liberto. Uma forma de suspensão, quando a vista se deliciava com a beleza da paisagem e as narinas se embebiam de maresia. A baía de Guanabara é uma epifania geográfica.

Havia liberdade naquelas barcas, como se fossem um território à parte. E também tinha algo da alma suburbana que, excluída das benesses, se sente mais solta das formalidades. Acho que é assim até hoje. Quero dizer: as pessoas falavam alto e se expressavam com espontaneidade.

Me recordo de um dia de nevoeiro cerrado, quando o piloto perdeu o rumo. A barca ficou fazendo círculos, adiando a ancoragem. Pois uma senhora começou a gritar: "Estamos sendo sequestrados para Cuba!". O pânico dessa senhora tinha a ver com notícias de sequestros de aviões manchetados nos telejornais da época.

Também assisti à cena de um suicídio. Um homem se jogou nas águas da Guanabara. Correria. O marinheiro salva-vidas nervoso atirou uma boia e o homem a agarrou sofregamente. Foi resgatado. Nos meus quatorze anos, senti uma esperança tremenda.

O episódio mais saboroso, do qual me recordei muitas vezes nesses quarenta anos, foi protagonizado pelo locutor da barca. No momento em que ela atracava, uma voz pelo alto-falante avisava para os passageiros não esquecerem os pertences no interior da embarcação. Sempre a mesma frase com igual entonação.

Daí, um dia aconteceu. O locutor falhou: "Senhores passageiros, desembarquem com segurança e não esqueçam seus problemas no interior desta barca". A gargalhada foi imediata e coletiva. Um uníssono de centenas de gargantas. Simples e inesquecível.

fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo!. Escreve às quintas.

* Este texto marca a volta do nosso Observatório da Esquina. É dedicado às queridas e queridos leitores. E particularmente dedicado à memória de uma leitora fiel e amada, Wilma Monteiro (1952-2012).

7 comentários:

Anônimo disse...

Pior foi eu, atravessar da Tijuca a Niterói para estrair um dente de leite efazer a viajem de volta com a falta do m eu dente e a boca com algodão tampado o buraco deixado pelo dentista, onde o mesmo com uma educação dos anos 30,eu uma criança não mais que 9 anos disse ao ilustre doutor a medicação estava com gosto azedo, o doutor retrucou, o gosto é amargo e não azedo, realmente fazer uma da Tijuca Rio para Niterói para extrair um dente via balsa a gente fica com um gosto amargo na boca ....

Alba Lucy disse...

Que delícia voltar a pegar a barca semanal de suas crônicas, nos permitindo breves viagens interestelares na história e nos sentimentos mais profundamente humanos. Salve minha barqueira de letras favorita!

Carmen Lucia Luiz disse...

que bom para nós leitoras/es que tua "viagem de férias" acabou e podemos voltar a beber esta sopa de letrinhas das quintas, que nos deixa mais nutridas/os em espírito e, portanto, bem mais bem-humoradas/os.

Anônimo disse...

E PRIMA QUE BOM QUE SUAS FERIAS ACABARAM ,ASSIMPODEMOS VOLTAR A NAVEGAR NAS ONDAS DELICIOSAS DAS SUAS PALAVRAS!! EU JA LEMBRO MUITO DA BARCA"CANTAREIRA' QUE FAZIA A MESMA TRAVESSIA COM GENTE E SEUS CARROS . ME LEMBRO DE ESPERAR O QUE PARECIA HORAS ,NO DKV AZUL DO VOVO JULIO ,COM O TIO TERNINHO E O WALTINHO .ESSE DIA DEMORO TANTO QUE COMECOU O JOGO DO FLAMENGO COM ALGUM TIME E O TIO TERNINHO NERVOSAO ESCUTANDO OJOGO NO RADINHO DE PILHA A ESPERA DO EMBARQUE .QUANDO FINALMENTE EMBARCAMOS ,FIQUEI ENCANTADA COM OS GOLFINHOS QUE SALPICAVAM EM TODA BAIA E O TIO APONTANDO PRA LA E CA . QUE SUADADE ,NITEROI PARECIA UM OUTRO PAIS !!! BJS DA PRIMA LYDIA

Raymundo Araujo Filho disse...

Prezada Fernanda

Morador de Niterói há 36 anos, compartilho de sua opinião. As barcas hoje não têm janelas amplas para vermos a paisagem, e TODAS as cadeiras estão de frente pra aquele balcão de comestíveis industriais asquerosos. Coincidência? É lógico que não.

A diminuição das embarcações em 900 lugares por viagem, com a desculpa de ganharmos 5 minutos é uma balela inadimissível, poios apenas visa alavancar as empre3sas de õnibus que fazem Rio-Niterói e São Gonçalo, as verdadeiras donas do "consórcio.

Mas, prezada Fernanda, creio que este Povo desogarnizado, preguiçoso e alienado merece é mais pau no lombo, para deixar de ser vendido e desinteressado pelo seu futuro.

Hoje faço a campanha do Quanto Pior melhor, prá ver até onde este Povinho aguenta de Chibatadas no Lombo.

Fazemos o que podemos, mas as grandes mobilizações terão de ser feitas pelo próprio Povão.

Entregar a tarefa de "representar" os anseios do Povo" para esta politicalha (mesmo a que se diz oposição) é um erro que não cometo jamais.

Raymundo Araujo Filho

anigram disse...

adorei a epifania geográfica!
obrigada fe!

Marcelo Perocco disse...

Lendo esse texto da barca de Niterói me lembrei de um fato que até hoje me deixa triste quado lembro: eu morava em 1974 em Jacarepaguá na casa da minha tia, estudante do Pedro II de S. Cristovao, e minha mae veio com meus irmaos menores passear no Rio. Uma tarde fomos à Paquetá numa barca daquelas da época. No meio da viagem minha mae encostada no parapeito da barca, segurando a bolsa grande de vime com a barriga, apoiada contra a trave da barca, num momento de descuido deixou a bolsa escapar pra fora... foi triste ficarmos vendo a bolsa aos poucos se distanciando na imensidao do mar, com tudo dentro: os óculos dela, que é super míope, a camiseta do meu irmao que na volta passou frio, e entre outras coisas todo o dinheiro que ela tinha e as passagens de volta pra Minas... sempre que penso em Paquetá me dá uma certa tristeza. Cabisbaixos e sem graca passamos a tarde lá antes de voltar...

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