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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A semente de amor de Carlos Cachaça comemora 110 anos


Todos vieram de algum outro canto do Rio de Janeiro e foram morar naquele mundo de zinco que é Mangueira. Antes mesmo de outros poetas e trovadores, sambistas e partideiros, chegarem àquele morro, o menestrel Carlos Cachaça já estava lá. Nasceu no pé da colina, perto da linha do trem, onde o pai, ferroviário, tinha um barracão.

Ainda criança, Carlos Moreira de Castro subiu o morro que seria seu lar por toda a vida e foi morar com o português Tomás Martins, dono de vários barracos em Mangueira. O pequeno Carlos ajudava o padrinho analfabeto assinando recibos e percorrendo as vielas da localidade, recebendo aluguéis dos primeiros habitantes do lugar que entrou para a história da música brasileira. Aos poucos, conheceu lugares atraentes como a casa da Tia Fé, onde escutou um samba pela primeira vez, cantado por Mano Eloy, sambista lendário de Madureira.

Carlos Cachaça – apreciador de uma boa dose de caninha, que recebeu o apelido ainda jovem para se diferenciar de outros dois Carlos – viu o morro se desenvolver e o samba florescer, junto a diversos blocos carnavalescos, como o dos Arengueiros, fundado por ele e seu amigo e pupilo Cartola, oito anos mais novo, e formado exclusivamente por foliões bagunceiros, como bem dizia o nome. Anos mais tarde, levariam o verde e rosa daquele pavilhão para outra agremiação, desta vez uma Escola de Samba, a Estação Primeira de Mangueira.

Compositor de alto requinte, poeta, mestre de Cartola e um dos maiores baluartes do samba brasileiro, Cachaça tem, no próximo dia 5 de agosto, celebrados os seus 110 anos de nascimento. Viveu 97 anos e acompanhou de perto a gênese e a evolução da música popular urbana brasileira, bem como as profundas transformações que atingiram sua Mangueira e o Carnaval. Legou pérolas para o cancioneiro brasileiro.

“Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre
O meu sorriso é por consolação
Porque sei conter,
Para ninguém ver
O pranto do meu coração”

Dupla estrelar

Parceiro de Cartola em diversas composições, como “Não quero mais amar a ninguém”, “Alvorada”, “Quem me vê sorrindo” e “Tempos Idos”, Cachaça é pouco lembrado como compositor destes e de tantos outros sambas que fez com seu amigo e concunhado – a esposa de Carlos e a mulher de Cartola, Menininha e Zica, eram irmãs.

Em 1933, levou à avenida um samba que estava de acordo com o enredo. Até então, os sambas cantados nos Carnavais – sambas de terreiro, banais, que falavam de amor e da natureza – não eram associados ao tema do desfile. Nascia o samba enredo. E, antecipando o que viria na década de 1940, quando os sambas seguiam temas históricos e patrióticos, sua composição daquele ano, “Homenagem” já exaltava grandes brasileiros. Não eram heróis de revoluções e nem mártires pela liberdade, mas poetas.

“Recordar Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias
E outros imortais que glorificaram nossa poesia
Quando eles escreveram, matizando amores, poemas cantaram
Talvez nunca pensaram de ouvir os seus nomes num samba algum dia”

Se nesta época, alguns sambistas de morro, como seu parceiro Cartola, emplacavam gravações com grandes cartazes (Francisco Alves, Silvio Caldas, Carmem Miranda, etc) da incipiente, mas muito fértil, música popular brasileira, Cachaça teve, nos anos 30, apenas um samba levado à cera: “Não quero mais amar a ninguém”, parceria com seu melhor amigo – embora o nome de Cartola não conste no disco – e Zé da Zilda, registrado por Aracy de Almeida, em 1936.

O lirismo requintado dos versos do Menestrel de Mangueira, décadas depois imortalizados na primorosa regravação de Paulinho da Viola, rendeu-lhe uma homenagem. Se antes ele celebrou os poetas com seu samba, agora eram os poetas que celebravam seu samba. A riqueza do verso “semente de amor sei que sou desde nascença” é tamanha, que este foi premiado e arquivado na Academia Brasileira de Letras.

“Semente de amor sei que sou desde nascença
Mas sem ter vida e fulgor, eis minha sentença
Tentei pela primeira vez um sonho vibrar
Foi beijo que nasceu e morreu sem se chegar a dar”

Aos 74, o primeiro LP

Como o pai, Cachaça também foi ferroviário e por quarenta anos exerceu a profissão, com a cabeça repleta de linhas melódicas de sambas, que seriam cantados no primeiro pagode que houvesse em Mangueira ou nos outros redutos que gostava de frequentar, como Salgueiro, Estácio de Sá e Oswaldo Cruz. Aposentou-se como escriturário na Rede Ferroviária Federal. De sua Mangueira, entretanto, ainda sairiam muitos frutos saborosos.

Em 1968, registrou seu canto pela primeira vez. Foi no disco “Fala Mangueira”, em que, ao lado de Cartola, Nelson Cavaquinho, Odete Amaral e Clementina de Jesus, celebrou a Verde Rosa, berço dourado de tantos bambas. “Lacrimário” é uma composição sua, com letra e melodia, de beleza pungente:

“Tenho um lacrimário extraordinário,
Lindo relicário que um dia fiz do meu sofrer
Fiz de agonia, fiz de nostalgia
Parte de um romance, sem acabar o meu viver”

Oito anos depois, o Poeta do Morro de Mangueira pôde, finalmente, gravar um disco inteiro. Com produção de J. Botezelli, o Pelão, figura de suma importância para o samba e para música brasileira, e arranjos – fiéis ao samba mangueirense – de João de Aquinho, o álbum reuniu 12 composições criadas ao longo de mais de 50 anos pelo gênio da raça.

No encarte, as letras garrafais relatavam a injustiça que acabara de ser reparada: “CARLOS CACHAÇA – 1º LP AOS 74 ANOS”. O primoroso disco reuniu instrumentistas de alto valor como Raul de Barros (trombone), Copinha (flauta), Waldir de Paula (violão 7 cordas), Meira (violão), Canhoto (cavaco), Marçal, Elizeu, Jorginho e Gilson (ritmo) e é considerado um dos mais emblemáticos álbuns de samba de todos os tempos.

“Se algum dia, eu souber que você vai deixar meu coração,
Que é todo seu, em busca de outro amor
Não serei mais feliz
Porque você não quis
Depois serei, como fui seu, da minha dor”

Atentos à importância da celebração dos 110 anos de seu nascimento, o Projeto Samba de Terreiro de Mauá, agremiação que há quase uma década realiza ações afirmativas em prol do samba, notadamente o samba de terreiro praticado nas antigas Escolas de Samba do Rio de Janeiro, realiza, no próximo dia 5 de agosto, uma grande homenagem ao compositor mangueirense.

A celebração acontecerá no Centro Cultural Dona Leonor (Rua San Juan, 121 – Parque das Américas –Mauá, SP), a partir das 15h, e contará com a presença de Marília Barboza Trindade, “biógrafa” da Mangueira, com quem o homenageado conviveu intensamente.

Ouça a riqueza dos versos e melodias plangentes
de Carlos Cachaça, em seu único álbum de 1976



 André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês. Ilustração de Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, especial para o texto

3 comentários:

Terreiro de Mauá disse...

Parabéns mano André Carvalho (Piruca). Belo texto sobre um grande Mangueirense. Aproveito para reforçar o convite à todos para o Dia 05 de Agosto, onde celebraremos em roda de samba os 110 anos de Carlos Moreira de Castro.

Caco Bressane disse...

Homenagem importantíssima! Ótimo texto André! Linda a ilustração Kelvin! Parabéns aos dois! Viva Carlos Cachaça!

Billy da 09 disse...

Ao Ler esse texto a gente se "Teletransporta" para os "Tempos Idos" . Parabéns André. Paz e Luz!

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