por Carlos Conte*
Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo. [...] São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes ideias [...].
Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chiques que fizeram as grandes reformas do mundo.
Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.
(Lima Barreto, “Elogio da morte”, Marginália, 19-10-1918)
A loucura anuncia verdades insuportáveis.
(Antonin Artaud)
Em vez da histeria de todo o mundo, prefiro falar dos loucos da minha rua. Aos distúrbios do mercado mundial, à crise política que não tem fim, aos abalos sísmicos noticiados diariamente, a essas efemérides bandidas que vivem nos atormentando nesta cidade doente, nesta crônica prefiro evocar os loucos que sobrevivem na minha memória.
Os loucos dos meus sonhos infantis. Outro dia mesmo era o Teresinha que me atormentava, com sua camisa regata, seu shorts curto, suas pernas extremamente longas e finas e extremamente trançadas, quando se sentava falando sozinho num banco da praça central da cidade de Lins. Outro dia era o Teresinha, com seu rosto desesperado e suas pernas inquietas, que torturava o meu sono. Há pesadelos antigos. Será que um dia me livrarei da sombra do Teresinha?
Que foi feito de você, Cadão, o louco da minha primeira infância? A média de idade da turma da rua não passava de dez anos, Cadão já tinha 18. Falasse mal do Corinthians, o bicho esquentava, mandava tomar no cu e tudo mais. E nisso, confesso, sou igualzinho a ele. Cadão chegava com seu rádio, conversava, jogava bola, participava das brincadeiras; tudo normal. Mas ainda assim era o louco da rua; que vai fazer? Tudo ia bem até que, sem motivo, descontrolava-se, e aí só a mãe pra lhe convencer a não meter a mão na cara de um. Dava pena vê-lo retornar a casa chorando, cabisbaixo, jurando pra mãe que não tinha sido ele. E na maior parte das vezes não tinha acontecido nada mesmo; surtava, pronto! A troco de nada, encrencava com quem estivesse mais perto. Da última vez em que deram notícias suas, disseram que o Cadão tinha sido pego se masturbando no portão da casa de uma menina gostosa da rua. Que perigo! Não se falava de outra coisa na Ipojuca. Por onde você anda fazendo suas loucuras, Cadão?
E você, Moedinha, será que morreu? Quando eu era pequeno, Moedinha já era velho. Não tem lapeano dos lados da Ipojuca, Siciliano, Romana, Bela Aliança que não o conheça. Imaginem um típico corcunda de histórias infantis... Calvo, barrigudo, passava todos os dias na minha rua, repetindo a ladainha de um tal padre que tinha dado o cu. Era sua obsessão. Não sei se sustentado por delírios ou por fatos verdadeiros, isso nunca vou saber, ele afirmava conhecer um padre que tinha dado a bunda na sacristia. O padre deu a bunda na sacristia! Se a molecada ia lhe encher a paciência, lá ia ele outra vez falar do rabo do padre, e isso bastava para o nosso divertimento. Mas tinha quem se incomodasse com ele: nossos pais. Não se sabe por que, o Moedinha tinha criado o hábito de roubar o jornal dos outros logo pela manhã. Para isso, carregava consigo um pedaço longo de vara com o qual arrastava os jornais pelo portão até o alcance de suas mãos. Era se demorar um pouco mais que o habitual para apanhar o periódico de manhã para o velho Moedinha entrar em ação. “Volta aqui, Moedinha, seu filho da puta!”. E lá ia ele, rapidinho, curvado sobre sua pança, repetindo para sempre a história do padre pederasta.
Atualmente tem o vizinho da padaria Natalina, aonde vou comprar pão. Mas, diferente dos outros, este vive encarcerado. Devem esconder a chave do portão com medo de que ele fuja. Mas isso não o impede de fazer suas loucuras publicamente, já que o portão, feito de barras de ferro, permite comunicação fácil entre a casa e a rua. Com o fuço metido entre as barras de ferro, ele lança seu urro com uma potência impressionante, fazendo-o ecoar longe, até os ouvidos das estudantes, dos clientes da padaria, dos entregadores de marmita, dos funcionários das oficinas, dos idosos e inclusive dos seus cães, que têm a audição muito mais aguçada que a nossa, não é de hoje que a Lapa está transbordando de cães. Ele grita. Mas alguém lhe dá atenção? Afinal, é o louco da rua. Só a molecada se mete com ele – sempre a molecada!, que passa tirando sarro, fazendo troça – e não tem como segurar o riso ao vê-lo se esmagar no portão, projetar seus dentes pra fora da grade, tentando responder às provocações. Mas os moleques passam, as tardes passam, e o louco da Rua Sepetiba vai continuar anunciando aos berros a verdade universal: “O que foi? Vocês não sabem? Ah, vocês não sabem... Eu sei de tudo! Eu sei de tudo!...”. Mas ninguém se interessa por suas verdades.
* Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração: foto da escultura "Boy" do artista australiano Ron Mueck.
2 comentários:
Muito bom, lembranças essas provenientes de nossa infância, da nossa vida, que nunca ira pairar de nossas memórias,que ajudaram a formas o caráter e formar uma ideologia unica, na qual cada um constrói sua historia de vida.
Que beleza, me fez lembrar de alguns do bairro q morei!!
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