Não é considerado educado falar sobre o que vai – ou sai – pelo aparelho digestivo, especialmente suas partes mais baixas. Mas na semana passada a revista científica Science publicou um trabalho sobre a perspectiva medicinal de transplante de microbioma. Trata-se de um eufemismo para dizer: comer merda. E o pior, cocô de terceiros.
Por mais repugnante e nojento que possa parecer os cientistas estão estudando metodicamente a fauna intestinal e fecal de pessoas que tiveram o estômago reduzido na agora corriqueira operação para emagrecimento. Descobriram que os pacientes da cirurgia não só ficam mais esbeltos, mas também que os portadores de diabete do tipo 2, aquela que aparece por excessos na alimentação, ficavam imediatamente curados dessa doença. A conclusão do minucioso trabalho é que o emagrecimento pós-operatório pode não ser consequência da cirurgia propriamente dita, mas, sim, da traumática mudança ecológica do meio ambiente intestinal.
Para replicar cientificamente o que acontece na cirurgia de by-pass estomacal, os pesquisadores usaram camundongos, pois não seria ético, nem de bom gosto, testar as hipóteses em seres humanos, naturalmente avessos ao cheiro e consistência nojenta dos excrementos fecais. Pegaram uma dupla de ratos gordos e fizeram o seguinte. No primeiro realizaram uma cirurgia de by-pass e esperaram o previsto emagrecimento.
Então transplantaram a fauna intestinal – o cocô – para o segundo gorducho, que não tinha sido operado. Ele também emagreceu.
A evidência de que esse procedimento realmente funciona num amplo espectro de doenças é que as vítimas de diarreia crônica após o tratamento com antibióticos fortes (que destrói indiscriminadamente a fauna intestinal) já pode ser experimentado aqui em São Paulo, como descreve uma reportagem publicada sábado passado no jornal Estado de S. Paulo. É meio bizarro, se não surreal, que o doente tenha de ir num dos mais caros e elitista hospitais da cidade para ser administrado com fezes de terceiros.
Já se sabe que nós humanos somos uma colônia de micróbios. Na verdade carregamos dez vezes mais intrusos dos que células de puro sangue realmente humanas. Ou seja, somos um meio-ambiente muito confortável para milhares de tipos de micróbios. Além da presença física, os micróbios têm seus próprios programas genéticos em funcionamento, o que certamente causa interferência no nosso genoma puro sangue. Eles podem, teoricamente, afetar até mesmo a saúde mental humana.
Acontece que nossos intestinos mostram muito mais atividade de receptores de serotonina do que no cérebro. A serotonina é o neurotransmissor implicado nas crises de depressão e quase todos os antidepressivos modernos agem bloqueando a recaptura dessa substância pelas células, o que aumenta a quantidade delas navegando no organismo a nível celular. Não se sabe o que a serotonina faz nos intestinos, mas no cérebro ela torna as pessoas menos deprimidas e mais felizes.
Recapitulando a história da evolução dos seres vivos multicelulares constatamos que as mais primitivas criaturas eram basicamente tubos por onde entravam líquidos nutritivos do ambiente e de onde saiam os dejetos do metabolismo. Essas criaturas deviam se sentir felizes quando passavam petiscos. Talvez a função básica dos sistemas sensoriais e de prazer nesses seres primordiais tenha sido apenas acessória para o básico, que era absorver nutrientes.
Portanto a medicina está no limiar de reabilitar o estigma e fama a que estavam relegados esses baixos órgãos, em detrimento do supervalorizado cérebro, que foi considerado sede das mais sublimes faculdades humanas e até mesmo habitat da alma transcendental.
OS: A palavra escatologia tanto significa o estudo do apocalipse, do destino final e o arrebatamento da alma humana como também o estudo das fezes.
*Flávio de Carvalho Serpa, jornalista, especial para o Nota de Rodapé. Conheça seu blog.
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