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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Solilóquio sobre a monotonia



por Alexandre Luzzi*

A oportunidade da escrita tem transformado a forma como vivencio o mundo. Tenho prestado mais atenção nas coisas que me cercam, incluindo meu mundo interior. Aliás, sempre tive dúvidas quanto a essa separação entre exterior e interior, afinal, emoções e sentimentos também são feitos de carne, ossos e mundo.

As motivações para o texto de hoje são duas: a primeira diz respeito a um sonho que tive  certa noite. Eu era observador em uma partida de futebol vibrante e disputada, em que dois times se digladiavam sem definição. Enquanto isso, os torcedores cantavam de forma penetrante das arquibancadas: “jogamos o jogo com a bravura de estar fora de alcance”.

Identifiquei a música, das minhas preferidas, que é do álbum In the flesh (na carne) de Roger Waters. O que teria motivado tal material onírico? Qual o significado dessa canção dentro desse sonho? Alguém conhece algum psicanalista por aí?

Confesso que fiquei inquieto com o assunto e fiz uma investigação partindo dos pensamentos conscientes que mais me importunaram nos últimos dias. Fiz a seguinte associação: sentado em meu sofá, dias atrás, em uma manhã de domingo meio nublada, enquanto via um desses programas esportivos espetaculares pensei:

– Como anda monótona e ordinária essa minha vida perto das aventuras que vivem esses esportistas e jornalistas que arriscam tudo por uma sensação “extra-ordinária”.

Maratonas exaustivas em lugares exóticos, escaladas em montanhas com alto grau de risco, ondas gigantes surfadas no fio da navalha, mega-rampas de skate que desafiam a gravidade, lutas agressivas que fazem qualquer filme de gladiadores virar desenho animado.

Mais perguntas tomaram de assalto meus pensamentos. Que tipo de experiência estão buscando essas pessoas? Que corpo é esse que hoje suporta todo tipo de provação esportiva? Onde estão ancorados nossos ideais de felicidade e bem-estar? Em que medida a cultura modula tudo isso? Além de todas essas perguntas, o que mais me intrigava era entender a relação desses pensamentos com o sonho. Será que nossa mente inconsciente é capaz de apresentar respostas simbólicas para anseios e angustias reais?

O fato era que realmente me senti insatisfeito com minha própria vida diante de tanta exuberância sensorial espetacular mostrada naquele programa. No mesmo instante outro pensamento colocou-me um contraponto:

– Rechear a vida com êxtase sensorial significa ser mais feliz?

Sem respostas fui atrás de alguma literatura que desse uma luz sobre o assunto. Encontrei algumas coisas muito interessantes que gostaria de dividir (a segunda razão do texto de hoje).

Diz o psicanalista Jurandir Freire Costa, por exemplo, que a atualidade é marcada pelo peso dado ao desempenho sensorial do corpo na construção dos ideais de felicidade. Nossa cultura associa, cada vez mais, êxtase sensorial com felicidade, é a cultura da “adrenalina”, diz ele.

Valorizamos atualmente objetos e imagens que excitam os sentidos despertando o corpo para uma nova prontidão prazerosa. O problema é que essa estrutura é similar ao arranjo bioquímico do vício, ou seja, depois de um certo limiar a pessoa não consegue parar de aumentar a dose.

Segundo o mesmo autor, êxtase é um ponto de intensidade que, uma vez atingido, decai rapidamente, e ao se tornar familiar, perde o atrativo. E além de cessar com o fim da excitação, raramente o indivíduo reproduz o gozo na forma original. Desse ponto de vista a felicidade erguida sobre o êxtase sensorial é precária, vacilante e passiva.

E temos o extremo oposto dessa engrenagem: dor, sofrimento, angústia e perdas, que são sensações a serem exterminadas pelo primeiro pastor, médico, curandeiro ou, até mesmo, educador físico que aparecer. Quanto mais falamos em minimizar o sofrimento e otimizar o prazer, mais nos privamos de prazer e mais nos atormentamos com os sofrimentos que não podemos evitar.

A busca da felicidade é um horizonte perseguido pela maioria das pessoas, no entanto, poucos se dão conta da dependência desse conceito com pressupostos culturais.

Dependendo do sentido e dos ideais que nos mobilizam nessa busca, corremos o risco de como na torcida do meu sonho, “jogar o jogo com a bravura de estar fora de alcance”.

O que quero dizer é que damos muito valor a realidade e pouco valor a imaginação – sorte dos poetas e escritores que se refugiam da monotonia da existência criando um mundo novo a cada escrita. Talvez, mais importante do que ser feliz é ser criativo. A compulsão pela felicidade sensorial é a ação criativa em seu mais baixo grau de expressão. Já o seu mais alto grau, é coisa que só Fernando Pessoa sabe expressar:
“Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto.”
*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo.

Um comentário:

Sara Eduarda disse...

Só discordo mesmo é do seu título nessa prosa curiosa, cheia de perguntas a pular em pensamentos.
Por isso não é mais um Solilóquio. rsrsr

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