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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 8 de maio de 2013

A Casa da Vó


por Tomás Chiaverini  ilustração Ligia Morresi*

Uma festa dionisíaca. Música alta sem ligar pros vizinhos, intervenções artísticas nas paredes, stripers, pirofagia, fogos de artifício. A festa da demolição. Era o mínimo que poderíamos fazer pelo predinho de dois andares, encravado no âmago da boemia paulistana: Arthur de Azevedo, quase esquina com a Fradique Coutinho. A Casa da Vó.

A primeira vez, pus os pés sobre os tapetes persas puídos que forravam o chão de tacos da Casa da Vó foi há algo como quinze anos. Estava no colegial e usava um vergonhoso porém bem cuidado rabo-de-cavalo. Devia ser pouco mais de dez da noite e lembro bem do meu grande amigo Arpad entrando pé-ante-pé na minha frente, do som alto e da luz azulada da televisão vindo do quarto da Dona Alzira.

– Vó?... – Ele gritou da sala, com a voz cheia de receio. – Trouxe um amigo pra dormir aqui, tudo bem?

– Contanto que não durma comigo!... – Foi a resposta bradada num português arquetipicamente alentejano.

Dona Alzira era assim. Baixota e gorducha, dona de um mau-humor tão direto e evidente que ganhava contornos cômicos. Lúcida e ativa, sabia da fama de birrenta e usava isso a seu favor, às vezes (talvez na maior parte delas) apenas por diversão. Tinha uma vitalidade incomum para os oitenta anos e estava sempre viajando, o que, ao longo de uma década e meia, nos deu oportunidade de realizar um sem número de festas dionisíacas no seu apartamento recheado de fotos antigas e flores de plástico.

Não lembro quantas vezes dormi embriagado nos lençóis de Dona Alzira enquanto ela viajava pelo Brasil em excursões da terceira idade. Mas lembro bem de algumas em que sucumbi às carícias femininas, pecaminosamente alheio ao Cristo de madeira, obrigado a assistir a tudo com as mãos pregadas na parede da cabeceira.

Dona Alzira sofria com nossa boemia, com a boemia do bairro e, em especial, com a boemia do neto. Um desabafo dela ao próprio tornou-se anedota recorrente no fabulário da Casa da Vó. Estava inconformada com a morte de duas plantas postas em dois grandes vasos na calçada, ao lado da porta da frente.

– Toda noite esses bêbados sem-vergonha mijam nas minhas plantas – revoltava-se sem saber que a fonte da ureia mortífera era, vejam só, a bexiga de seu próprio neto.

Há cerca de dois anos, Dona Alzira ficou doente. Na verdade foram vários problemas na sequência, um agravando o outro. Ela perdeu a vitalidade numa velocidade espantosa e em pouco tempo já não podia morar sozinha. Há pouco mais de um ano, mudou-se para a casa da filha, e alugou o apartamento para o neto, que convidou outra amiga, a Marilia, para dividir a casa e as despesas.

A vocação ainda mais festiva da nova configuração já se evidenciou na mudança. Pleno sábado de carnaval, uma van, três amigos, daí passamos na casa do Paulo que incrivelmente estava de bobeira na calçada, pensando no que fazer da tarde modorrenta, e foi imediatamente sequestrado junto com a Nat, e logo era tudo uma confusão de coisas velhas sendo jogadas fora e perucas da Dona Alzira distribuídas para acompanharmos o bloco de rua que logo passou na nossa porta, como aconteceria se a vida fosse um filme de Felini.

Em pouco tempo, o que era um ponto de apoio à boemia, logo se tornou o centro da nossa interação social, zona franca dos prazeres mundanos. Por um regulamento nunca escrito ou sequer falado, alguns membros subjetivamente eleitos daquele grupo tinham liberdade de marcar comemorações, aniversários ou churrascos na Casa da Vó.

Alheia às alegrias que sua ex-casa nos proporcionava, Dona Alzira ficou novamente doente. Foi internada algumas vezes, por períodos progressivamente mais longos... Até que, já viram... Há alguns meses Dona Alzira não está mais entre nós. E algum tempo após a sua morte, a família finalmente capitulou às investidas de uma construtora. Não havia escolha. Ou vendiam o predinho por uma polpuda quantia de reais, ou teriam de conviver com uma obra que se estenderia durante anos e faria da Casa da Vó uma verruga encravada em mais um arranha-céu neoclássico. Isso se as velhas fundações resistissem aos bate-estacas.

Daí, portanto, a ideia da festa da demolição. Uma última homenagem ao prédio moribundo. Um misto de comemoração, catarse e funeral, uma histérica e dolorosa ode a Shiva e à inclemência do tempo. Chegamos a planejar as intervenções artísticas e até escolhemos a data. Não aconteceu na primeira e adiamos, sem muita certeza. Também não aconteceu na segunda.

E, novamente, já viram... A festa da demolição nunca se concretizou. Meu grande amigo Arpad arrancou as peças dos banheiros, as janelas e as portas para instalar na sua nova casa, num sítio no extremo da Zona Sul. O máximo que pude fazer foi quebrar um pedaço de parede com um ponta-pé. E hoje nosso querido sobrado não passa da uma pilha de escombros.

Aos leitores, peço perdão pelo anticlímax final. Mas assim parece ser a vida, uma vertiginoso desfile de caprichos e picuinhas do tempo. Poderia, talvez, terminar com o doloroso clichê de que éramos felizes e não sabíamos. Mas não seria verdade. Éramos felizes e sabíamos muito bem disso.


*Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração de Ligia Morresi, designer e ilustradora, especial para o texto

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