por André Carvalho ilustração Kelvin Koubik "Kino"*
Wilson Baptista (1913-1968) deu vida, com versos rabiscados em guardanapos e melodias forjadas no batuque de caixas de fósforo, aos tipos mais caricatos das ruas do Rio de Janeiro. Do malandro mais valente ao trabalhador mais “pelego”, do marido machista à mulher da orgia, do carioca flamenguista ao português vascaíno. Cantou a Lapa, a Mangueira, o Salgueiro.
Fez do Bonde 56 o Bonde Alegria, condutor de amores e inspirador de versos musicados. Criou personagens marcantes como Etelvina, Seu Oscar, Chico Brito, Hildebrando, Dona Inês, Emília, Alberto e Nega Luzia. Para celebrar o centenário de um dos grandes nomes da música brasileira, o Nota de Rodapé entrevistou o biógrafo do sambista, Rodrigo Alzuguir, que lançou, no início de julho o livro de partituras “Wilson Baptista – Cancioneiro Comentado”. Em setembro, Alzuguir vai lançar outra publicação sobre o sambista, a biografia “Wilson Baptista – O samba foi sua glória!”. Antes, o produtor cultural, ator, músico e pesquisador já havia produzido o espetáculo musical e o CD duplo que levaram o mesmo nome “O samba carioca de Wilson Baptista”. Alzuguir é imperativo ao afirmar que Baptista, um criador de personagens, foi além da composição, tornando-se um cronista social à frente de seu tempo, autor de aproximadamente 700 letras que viraram canções.
Nota de Rodapé - Quando Wilson Baptista morreu, amargava o ostracismo, a despeito de sua genialidade. Por quê?
Rodrigo Alzuguir - Ele morreu em 1968, um ano muito conturbado, de muitos protestos e de uma efervescência política muito grande. Os jornais naquela época só falavam em passeata, revolta, AI-5. Além disso, ele já estava meio esquecido, não chegou a pegar a revitalização do samba que estava começando a acontecer naquela época. Cartola, Nelson Cavaquinho gravaram seus primeiros discos nos anos 70. Se tivessem morrido antes, também teriam chegado com menos força até nós.
NR - Olhando por essa ótica, Noel Rosa é uma exceção, já que morreu muito cedo, ainda nos anos 30, desde então muito celebrado.
RA - Sem dúvida. Ele morreu muito cedo, no auge, e ficou como um mito. E tiveram duas pessoas fundamentais para a memória dele: Aracy de Almeida, que praticamente parou a sua carreira na década de 50 pra ficar gravando Noel, e Almirante, que fez a biografia do Noel, produziu vários programas de rádio e séries sobre ele. Badalou Noel até dizer chega. Noel teve esses dois arautos dedicadíssimos.
NR - E o Wilson não teve alguém que cuidasse de sua obra, seu legado?
RA - Wilson tinha muito orgulho de sua obra, falava com os filhos pra que eles cuidassem daquilo depois que ele morresse. Ele falava que tinha uma “bagagem” muito grande e queria que essas músicas dessem algum retorno, que eles pudessem viver disso. Mas isso nunca ocorreu. A obra dele ficou muito dispersa, inclusive as listagens oficiais, as músicas registradas em editoras, sociedades autorais. As listagens são totalmente incompletas, é uma coisa muito bagunçada. Eles, realmente, não puderam desfrutar disso.
NR - Por que você escolheu o Wilson Baptista para pesquisar? Por que ele dentre tantos outros?
RA - Porque eu acho que ele é o grande injustiçado de sua geração. Foi um dos que mais compôs entre os seus contemporâneos - até agora, levantei em torno de 500 músicas gravadas. Mas, além disso, ele tem uma série de inéditas e vendia muito samba para poder sobreviver (ele vivia de música). Então deve ter chegado a umas 700 músicas compostas. E apesar disso tudo ele era considerado um malandro.
Os próprios amigos dele falam em depoimentos: “Ah, o Wilson nunca trabalhou”. Aí eu fico pensando que é um baita preconceito, né? Porque uma cara que fez 700 músicas, e dizer que nunca trabalhou? É, no mínimo, um preconceito.
NR - E uma obra de extrema qualidade.
RA - Exatamente. Porque ele poderia ter feito 700 músicas medianas. Mas sua obra tem muita qualidade e acho que é até mesmo à frente de seu tempo, tanto em termos musicais, como nas temáticas que ele abordava. O olhar que ele tinha sobre a vida. Ele era um cara muito original pra sua época.
NR - Como você conheceu a obra de Wilson Baptista?
RA - Eu sempre fui apaixonado por essa geração dos anos 30, 40. Acho maravilhoso. Assis Valente, Ari Barroso, Noel Rosa, Ataulfo Alves. E o Wilson era um nome que eu já tinha ouvido falar, mas não conhecia grandes coisas.
Fui conhecer mais seus sambas quando eu fiz o encarte do disco “Ganha-se pouco, mas é divertido”, da Cristina Buarque, em tributo ao Wilson Baptista. Nessa época, em 2000, eu estava trabalhando à beça como designer e fiz a programação visual do Cd. E aí foi um banho de Wilson Baptista. E ela me emprestou bastante coisa, umas fitas do acervo da Collectors. E aí, eu fiquei ouvindo aquilo e vi que ele era realmente especial.
Rodrigo Alzuguir em foto de Jaqueline Machado |
RA - É. Aí eu vi que não tinha muita coisa publicada sobre ele. Tinha uma monografia da Funarte (“Wilson Baptista e Sua Época”, de Bruno Ferreira Gomes), e um outro livro, da série “Perfis do Rio” (“Wilson Baptista na corda bamba do samba”, de Luis Fernando Vieira), pouca coisa. Uma introdução ao assunto. Eu achava que merecia um mergulho maior, mas eu não sabia exatamente o que fazer sobre ele.
Então, comecei a pesquisar e reunir todas as gravações que eu pudesse, ouvindo tudo, estudando as letras. Aí eu confirmei minha impressão inicial de que o cara era super moderno e original para época.
NR - Mas você não sabia direito que rumo tomar na pesquisa, né?
RA - O que me despertou mais foi a coisa dos personagens. Ele era um cara que levava isso às últimas consequências. Em “Oh, seu Oscar”, no primeiro verso, já aparecem três personagens: O Seu Oscar chegando em casa, a vizinha que traz o bilhete da esposa, e a esposa. Achei muito teatral isso e queria bolar algo pra teatro.
Depois, fui vendo que a vida dele era muito interessante. E fui entrando em contato com contemporâneos seus que se foram ao longo da pesquisa: Roberto Silva, Jorge Goulart, Dorival Caymmi, Dercy Gonçalves, Emilinha Borba, Roberto Roberti.
Também encontrei a Ceci, do Noel, dançarina de cabaré, que motivou uma espécie de “triângulo amoroso” com o Wilson.
NR - Seria este o tema verdadeiro da “Polêmica”?
RA - O tema verdadeiro foi uma outra dançarina do Cabaré Apolo, antes da Ceci. Essa mulher - o nome dela não ficou registrado - era uma outra dançarina. Noel ficou afim da menina, mas o Wilson chegou antes e ganhou a parada. E o Noel iniciou a “Polêmica”, escrevendo “Rapaz Folgado”, um samba que debochava de um sucesso recente de Wilson, “Lenço no pescoço”.
Depois, o negócio esfriou um pouco e a Ceci apareceu no circuito nesse mesmo cabaré. E ela era de Campos, conterrânea do Wilson. Noel viu ele se aproximar dela e pensou: “Ah, não, de novo, não”. E aí, os ânimos se acirraram um pouco.
NR - Wilson ficou estigmatizado como o “vilão da polêmica com Noel”, para as gerações seguintes?
RA - A “Polêmica” em si trouxe muito mais desvantagem para ele. Porque as pessoas comentam que ele ganhou projeção por conta da “Polêmica”, como se tivesse sido uma coisa boa para a carreira dele. Mas eu acho que foi uma faca de dois gumes, porque trouxe uma certa projeção pra ele, ao passo que ele ficou com um papel de vilão na trajetória de Noel Rosa.
Ele já tinha emplacado um ou dois sucessos antes da “Polêmica” acontecer, e o Noel já era um cartaz, porque ele já tinha bombado com o samba “Com que roupa”, em 1930.
Noel era um jovem talento. De classe média, bem aceito nos jornais, era um artista do rádio. E o Wilson era um cara mais humilde, veio de Campos, era negro, não era um cara que estava acontecendo, que estava na crista da onda.
Quem iniciou a “Polêmica”, na verdade, foi o Noel. O “Lenço no pescoço” não era um samba de provocação a ninguém. Era um samba em que ele retratou um malandro muito bem. E todos os outros sambistas da geração dele já tinham feito samba exaltando malandro, retratando malandro. Inclusive Ari Barroso, Bide e Marçal, todos os caras do Estácio, Sinhô, todos eles, né?
E as pessoas ainda falam que Wilson iniciou a “Polêmica” com Noel. Um absurdo. Noel ficou enciumado com o lance da morena, a dançarina do cabaré, e foi provocar o Wilson. Mas nada além de uma brincadeira entre compositores.
NR - Que talvez tenha ganhado uma proporção maior algum tempo depois. Na época não foi tão falado, não?
RA - Na época ficou como uma piada interna entre os músicos, os frequentadores da Praça Tiradentes, da Lapa, do Café Nice. Não teve a menor repercussão fora dali. As músicas que Wilson fez para Noel nem foram gravadas na época, nem eram pra ser gravadas. Eram piadas, brincadeiras. “Ah, vou responder o fulano”.
O negócio só ganhou forma mesmo, quando o Almirante, nos anos 50, fez a série de rádio sobre o Noel. Era o programa “No tempo de Noel Rosa”, onde ele conta a vida do Noel em capítulos. E um capítulo dessa série fala sobre a “Polêmica”. Então, o Almirante dá uma rearranjada na história, apaga a morena do Cabaré Apolo da história e diz que a motivação do Noel teria sido uma preocupação com os temas poéticos da música brasileira. Mas, na verdade, o Noel era amigo de malandro. Amigo do Baiaco, do Zé Pretinho. Na verdade, aquilo era uma galhofa com o Wilson, não uma crítica à malandragem. Mas para a nossa geração, o Wilson ficou muito associado à “Polêmica”.
Pô, um cara que tem mais de 500 músicas gravadas, um compositor cheio de sucessos, cantado pelos melhores cantores de sua geração, ficar pra gente como “o vilão da polêmica com Noel Rosa” é triste. É uma pena que muita gente só se lembre da “Polêmica”, pois ele é um dos gênios da nossa música. O próprio Paulinho da Viola, uma vez, disse em um programa de televisão: “O Wlison Baptista, pra mim, é o maior sambista brasileiro”.
NR - Voltando a falar sobre a pesquisa que fez para escrever a biografia. Você teve um contato forte com pessoas bem próximas a ele?
RA - Como eu disse, tive a sorte de poder entrevistar pessoas que conviveram bem com ele. Sua irmã, dois de seus filhos, uma ex-companheira, amigos que ele fez nas décadas de 50 e 60. Fora os matusaléns todos que ainda estavam vivos, que citei antes. E fui procurando, também, pesquisadores que já tinham um trabalho sobre o Wilson. O Luis Fernando Viera é um pesquisador que têm entrevistas feitas nos anos 70 com toda essa gente que conviveu com o Wilson e que já havia partido quando eu entrei em campo – como Erasmo Silva, Roberto Martins, Ciro de Souza, Zilda do Zé... Então, eu digitalizei e pude escutar todo esse material, que é fantástico. Luis foi super generoso.
O acervo da Biblioteca Nacional, do Museu da Imagem e do Som, do Instituto Moreira Salles, tudo isso eu vasculhei. E fui procurando as viúvas e os herdeiros dos parceiros dele, que às vezes tinham acervos. Do Ataulfo Alves, do Déo, do Erasmo Silva, do Roberto Martins, que eram grandes amigos e parceiros dele. Um quebra-cabeça, cara, que eu fui montando, e aí já imbuído desse objetivo de escrever a biografia.
Baptista na década de 50 [Arquivo O Cruzeiro] |
RA - Inicialmente, eu comecei a pesquisar sem nenhum objetivo, encantado com essa história dos personagens. Aí logo veio essa vontade de fazer a biografia. Achei que era o que eu podia deixar de mais legal, de fruto mais proveitoso, de toda essa pesquisa.
NR - E já faz pelo menos uma década que você já está pesquisando para preparar essa biografia...
RA - Exatamente. E aí, em paralelo a isso, fui encontrando parceiros que trabalham nessa área de projetos culturais e a gente foi colocando em editais algumas derivações dessa pesquisa. O espetáculo, o CD, o songbook. E acabou que essas coisas foram acontecendo antes da biografia ficar pronta. E até, nesses momentos, tive que abandonar um pouco o texto e caí dentro dos projetos, pra eles rolarem. Mas foi bacana porque me trouxe um aprofundamento ainda maior, porque escrevi o texto da peça, cantei o repertório com a Claudinha (Ventura), minha parceira no espetáculo. Então, você vai ficando cada vez mais à vontade dentro daquele universo né?
NR - E o que veio primeiro? A peça ou o CD?
RA - Primeiro veio a peça. E foi bacana porque rolou uma sincronia perfeita. A peça veio através do FATE, o Fundo de Apoio ao Teatro da prefeitura do Rio, que nos deu o patrocínio. Logo depois veio um suporte da Petrobrás para a produção do CD duplo (“O samba carioca de Wilson Baptista”, mesmo nome do espetáculo).
E aí, como a gente estava com tudo organizado, com os arranjos do Roberto Gnattali e do Nando Duarte ensaiadíssimos para a peça, pensamos: “vamos fazer um dos CDs com a trilha da peça, cantados por mim e pela Claudinha, e o outro com repertório raro, inédito, cantado por convidados como Elza Soares, Marcos Sacramento, Céu, Mart ´nália, Cristina Buarque, Rosa Passos...” Os sambas mais desconhecidos com intérpretes conhecidos e o registro da peça. Eu acho que funcionou bem, ficou bem abrangente.
NR - E esses trabalhos todos têm um projeto gráfico comum?
RA - É. Porque como essas coisas a gente faz com pouca grana, eu acabei fazendo a programação visual do CD e do espetáculo. E aí a gente vai aproveitando as ideias e criando uma certa unidade.
NR - E agora, está saindo o livro das partituras.
RA - Aí, a gente conseguiu, através de outro edital, o FAM, que é ligado a música, fazer o songbook, que acabou de ficar pronto. São 105 músicas, tem um perfil biográfico que eu escrevi, uma apresentação do Sérgio Cabral, fotos raras. É um apanhado bem abrangente da obra dele e a gente fez num formato voltado pra músico mesmo – tentamos colocar uma música por página, em um formato de fácil manuseio.
Acho que o Wilson teria o maior orgulho desse trabalho, porque ele falava muito da “bagagem” dele, do seu legado. Então, acho que de todos os projetos, este é o que ele ficaria mais feliz de ver na rua.
Eu dei uma organizada no material dele. Muitas dessas músicas nunca tinham sido editadas. Ou foram editadas só nos anos 40 e nunca mais. Então, foi muito legal.
NR - E como foi a questão da organização das partituras? Como foi o contato com as editoras, para liberação dos direitos autorais, etc?
RA - O Wilson editou em umas seis ou sete editoras diferentes. E encontrei um super parceiro nesse trabalho, que foi Fernando Vitale, da editora Irmãos Vitale. E o Wilson tinha muito samba editado na Vitale. Então, Fernando fez esse meio de campo com as editoras. A nossa parceria com a Vitale foi fundamental.
NR - E esses trabalhos te deram muita base pra aprofundar a pesquisa na biografia, não é?
RA - Eu sou músico. Toco, canto e conheço muito bem o repertório dele. Então, não sou só um cara que tá escrevendo e ouvindo, mas musicalmente não sabe justificar o que está acontecendo ali. Eu tenho formação de músico, e isso facilita. Dá um olhar um pouco diferente sobre o assunto, uma propriedade pra falar. Daí quando vou escrever um trecho que está na peça ou que saiu no encarte do CD, aquilo já está digerido, fica mais fácil.
Acho que foi um processo abençoado. Qualquer um desses produtos que tivesse saído, eu já estaria feliz de ter conseguido fazer. E a gente conseguiu fazer um “combo” de biografia, songbook, espetáculo e CD.
O Wilson era um segredo que estava ali, gritando pra aparecer. O nome dele tem uma fagulha e a parada aconteceu.
NR - Conte mais sobre o processo de pesquisa da biografia.
RA - Eu dei sorte porque tinham algumas pessoas bem interessantes vivas quando eu comecei a pesquisar. O Jorge Goulart era uma fonte maravilhosa, o Roberto Silva, o Caymmi, a Ceci. E também tive a sorte de ter acesso àquele material de entrevistas do Luis Fernando Vieira. Aí pude ter acesso a entrevistas com a maioria dos parceiros do Wilson. O próprio Luis Fernando gostava muito do Geraldo Pereira, do Wilson, e perguntava muito sobre eles para os entrevistados. Então era um material bem precioso.
Além disso, encontrei uma irmã do Wilson, a Dona Yolanda, e uma companheira dele, Alverinda. E cheguei a fazer uma entrevista bem legal com uma filha do Wilson, a Marilza, que tinha 50 anos, mais ou menos, e nunca tinha sido entrevistada. Passou um lado mais pessoal do Wilson. E também falei com um filho caçula dele, Vílson, com “V”, que era um figuraça. Foi uma entrevista muito legal, um contato bacana porque ele me ajudou muito nessas investigações nas editoras, quando eu precisava de uma entrada mais oficial da família pra saber de alguma informação. Eles dois faleceram, não chegaram a ver os projetos acontecendo. A peça eu dediquei ao Vílson, o caçula, que era o maior fã do pai. Então, eu tive essa sorte de encontrar essas figuras-chave.
Eu acho que eu consegui mapear bem a vida do Wilson. Claro que tem trechos da vida dele que são difíceis de investigar, ainda mais ele que não deixava muita pegada, não deixou grandes entrevistas, entrevistas longas. Então, realmente tem coisas que eu até intuo, mas não sei realmente o que aconteceu.
NR - E ele teve uma fase mais reclusa, né? O final da vida dele, que ele já estava afastado da vida artística. Como foi essa época?
RA - Dessa época, eu consegui encontrar bastante gente para entrevistar, porque ele era um cara muito generoso com o pessoal mais novo que ele. Então, tinha muita gente que estava começando naquela época.
Ele estava mais recluso porque estava esquecido. E também estava muito amargo, revoltado. Porque, da geração dele, todos acabaram migrando para cargos burocráticos nas sociedades de autores, compondo num ritmo menor. Wilson não. E foi ficando pra trás.
Ele foi ficando na pior, porque não era mais gravado, não era mais badalado. E passou a ter problemas de saúde, porque ele tinha o coração aumentado. Cardiomiopatia dilatada, eles chamam de “coração de boi”. Tinha falta de ar, taquicardia, náuseas. Estava sem grana, preocupado com o aluguel. Aquelas coisas do Brasil, problemas da vida prática. E aí foi ficando mais recluso.
NR - E como foram as pesquisas em arquivos, jornais, revistas e institutos?
RA - Tem uma ferramenta da Biblioteca Nacional do Rio, que eu acho que vai revolucionar a pesquisa no Brasil. Era uma coisa que eu sonhava que um dia fosse existir: a Hemeroteca Digital Brasileira. É um site da Biblioteca Nacional que tem 700 coleções de jornais e revistas. E dá pra pesquisar por palavra-chave. Antes disso, passei séculos mergulhado nos microfilmes da seção de periódicos da Biblioteca, no centro da cidade.
NR - Ele ficou estigmatizado com a pecha de malandro? Por quê?
RA - Se você for fazer uma estatística da obra dele, tem pouco samba que fala de malandragem. Na verdade, eles sobressaíram porque eram muito bons e faziam muito sucesso.
NR - E quanto ao samba “O Bonde de São Januário”, feito com Ataulfo Alves, em que ele exalta o trabalho e que ficou como um marco dessa virada na temática, antes focada na malandragem e agora na exaltação ao trabalho, por conta da pressão do DIP, do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Como você vê isso?
RA - Isso foi uma onda que aconteceu pra todos os compositores. No carnaval de 40, aconteceu um baita festival, chamado “Noite da música popular”, com uma premiação de 50 contos para os vencedores. Foi um escândalo, porque era muita grana. Foi patrocinado pelo Estado Novo, o festival. E quem ganhou em primeiro lugar, entre os sambas, foi “Oh Seu Oscar”, de Wilson e Ataulfo. Então acho que isso gerou uma expectativa para o ano seguinte. No ano seguinte, os compositores ficaram meio que alvoroçados com esta possibilidade de ganhar uma grana com o concurso do Estado Novo.
NR - Era o concurso do carnaval?
RA - Exatamente. Eram eleitos o melhor samba e a melhor marcha. Foi o primeiro e maior festival patrocinado pelo DIP, criado alguns meses antes. Aí, acho que todo mundo ali ficou vendo a oportunidade de fazer o filme com Getúlio, de repente ganhar o concurso de carnaval. Então, todo mundo se alinhou a essa política, da exaltação do trabalho. Mas foi uma coisa curta. Isso não era uma marca do Wilson.
NR - E qual era a marca do Wilson?
RA - A originalidade do Wilson é marcante. Ele tem uma coisa muito forte com personagens. Você encontra personagens na obra de muita gente, né? Mas, na obra do Wilson, isso é levado às últimas consequências. Você tem sambas que são quase minioperetas.
Aracy de Almeida foi a que mais gravou Baptista |
RA - O Cabo Laurindo foi inventado pelo Noel, no samba “Triste cuíca”. Depois desse samba do Noel, vários compositores pegaram esse personagem. E o Wilson foi quem mais levou adiante essa história, com uns quatro ou cinco sambas. Tem a Etelvina, personagem que aparece em vários sambas. São muitos sambas teatrais. Ele usava os personagens várias vezes. Às vezes não com o mesmo nome, mas o mesmo “tipo”.
NR - São crônicas sociais, né?
RA - Exatamente. Outra coisa que eu acho muito forte nele: ele foi um dos primeiros a fazer samba pra mulher cantar, na primeira pessoa. Nos anos 40, fazia muito pra Aracy de Almeida, pra Odete Amaral. E são mulheres das mais libertárias. Não é feito de maneira machista. Um cacoete da época é a mulher reclamar do marido, reclamar do malandro. Então era muito comum. Mas as mulheres do Wilson eram mulheres muito à frente do tempo.
NR - Elas iam para orgia...
RA - É! Largam o marido pra pular carnaval. E aí, depois, a sandália estragava de tanto que ela sambava. Tem o samba “Boca de Siri”, em que ela narra a farra dela toda no carnaval, e depois pede pra ninguém contar para o marido. São mulheres meio “Leila Diniz”. Acho essa coisa da mulher muito forte nele também.
NR - Apesar de ter composto “Emília”, que é lembrado até hoje como um samba machista, não é mesmo?
RA - Pois é. Mas se você for ver em quantidade, ele tem muito mais samba em que a mulher é retratada com muita liberdade. Tem o samba “Chinelo velho”, em que a mulher não tá nem aí se o cara vai embora. Então isso é muito raro pra época.
NR - Ele foi um precursor nessa temática?
RA - Eu acho. Essa mulher é da geração da minha avó, a mulher não se separava. Ela ficava em casa presa ao marido e às tarefas do lar. Imagina a mulher roubar dinheiro pra pular carnaval? Depois pedir pra ninguém contar? Era muito engraçado, eu acho demais.
Outra coisa que eu acho muito interessante nele, apesar dele ser considerado o maior sambista por Paulinho da Viola e outras pessoas, ele remava contra a maré de vários clichês do samba. Por exemplo, religiosidade. Que é um tema muito caro ao samba, né? Sambas do Dorival, que falam do Senhor do Bonfim, do Ary Barroso, falando da Igreja da Penha, os padroeiros, os orixás... E o Wilson era avesso a qualquer ritual religioso, ele não tinha a menor ligação ao tema.
NR - Para a nova geração, que está descobrindo o samba e quer conhecer mais os compositores, os grandes intérpretes, por que conhecer o Wilson Baptista?
RA - Por conta dessa originalidade dele como compositor. No campo musical, ele era um compositor que tinha umas soluções de harmonia arrojadas e, ao mesmo tempo, simples, intuitivas. A geração dele, do Geraldo Pereira, trouxe uma coisa de síncope para o samba, um samba mais de bossa, despreocupado com métrica, com rima, um samba um pouquinho mais livre. Que é um samba que as pessoas dançam na gafieira e adoram, porque é cheio de síncope, é bem propício para aqueles passos. Então, musicalmente, eu acho que é um cara muito interessante.
E tudo que eu falei dessa originalidade, desse olhar. Um olhar muito livre de preconceito e livre de sentimentalismo barato. Ele era um cara que não fazia melodrama. As músicas dele têm humor, são criativas, têm originalidade.
NR - E tem questão social, também, não é?
RA - Algumas pessoas se referiam a ele como sambista “filósofo”. Ele dizia que as músicas tinham que ser fortes. Que cada música era um veículo do pensamento. Você consegue extrair das músicas dele um pensamento bacana. Por exemplo, no samba “Chico Brito”, ele afirma: “Se o homem nasceu bom e bom não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou”. Ele era um cara que tirava onda, botava um pensamento de Rousseau no samba.
Era um cara muito à frente do tempo. Acho que se não tivesse a censura do DIP, ele teria ido além. O samba “Lealdade”, também retrata uma relação super moderna. Vamos ficar juntos enquanto cada um gosta do outro. Se você não gostar mais de mim, sinta-se livre para ir embora. Naquela época, as relações eram super hipócritas, os casamentos infelizes se arrastavam até o fim. Ele era avançado mesmo!
Seleção de músicas para celebrar Baptista:
*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre
Um comentário:
Que beleza!
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