.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Com todas as letras


por Júnia Puglia      ilustração Fernando Vianna*

Vô, o que é prostituta? Era a minha irmã, uma lourinha espevitada de uns oito anos, atormentando nosso avô puritano na sagrada soneca da sesta. Azar dele, que sempre cochilava na poltrona da sala, com o Estadão caído sobre a cara. Desprevenido, ele arregalou os olhos, gaguejou qualquer coisa desconexa e voltou a se refugiar no sono, enquanto eu disfarçava o meu interesse na questão inesperada e só observava, bem caladinha. A perguntadeira fez aquela cara de “cadê a minha resposta?” por alguns segundos, mas logo uma tia a distraiu com outra coisa, e ficou por isso mesmo.

São muitas as explicações, justificativas, análises, condenações, julgamentos e punições que se podem dar à prostituição e às prostitutas. Dependem do contexto, das condições socioeconômicas, da localização geográfica, da estação do ano, das condicionantes religiosas, culturais e políticas. Dependem, ainda, das conveniências e do grau de hipocrisia, falsidade e veneno. O que dificilmente varia é a convicção de que as putas são escória, mercadoria, sujeira, vivem num submundo mais ou menos invisível, encoberto pela noite em suas muitas manifestações, convenientemente ignoradas e esquecidas, exceto quando se solicitam seus serviços. Espera-se que se conformem com a sua condição de vítimas exploradas, ou que só mostrem suas garras dentro dos limites de seus cafofos bregas.

Mas no caminho havia Gabriela Leite. Começou a dizer que escolhera ser puta – com todas as quatro letras – que esta era sua profissão, não aceitava o rótulo de pobre coitada vítima, ignorante e marginalizada. Para enorme espanto de padres, deputados, clientes, donas de casa, feministas, pesquisadoras, governantes e companhias ilimitadas, inclusive putas, levantou as bandeiras mais improváveis, com determinação e desenvoltura. Reivindicava visibilidade e direitos para... putas, veja você. Causou turbulências e comprou brigas a torto e a direito, até com as peruas paulistanas da Daslu, com uma provocação deliciosa, que as tontas vestiram como luvas de pelica zebrada, desperdiçando a oportunidade de viajar de carona na genialidade da Daspu.

Gabriela morreu há poucos dias, privando-nos da sua inteligência, sua garra, sua leveza e sua irresistível ironia, sempre prontas a detonar a discriminação e a mediocridade. Deixou-nos uma cauda de cometa. Espero que os rasgos abertos por ela na blindagem da vidinha pequenininha de quase todos nós sejam irreversíveis. “O que é prostituta?”, uma pergunta complexa, por mais fácil que pareça, hoje pode receber respostas em palavras justas e ao mesmo tempo prenhas de direitos, dignidade, transparência e honestidade intelectual, graças às poucas como ela. Meus profundos respeitos, Gabriela.

* * * * *

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

5 comentários:

Anônimo disse...

Assunto em eterna discussão. E vai se prolongar pelos tempos afora. Análise bem feita, corajosa, sintetizada com sensibilidade.
Bjs da Mummy Dircim

Nômades pelo mundo. Marina e Edison. disse...

Sem julgamentos e preconceitos, pergunto: será mesmo uma escolha de vida? Será mesmo? Por que? Nunca houve uma resposta clara a respeito. É um problema social ou uma escolha individual?

Anônimo disse...

Pode ser uma escolha de vida. Este é o ponto. Prostitutas não são sempre vítimas das circunstâncias ou pessoas sem opção. Júnia

Gisele Netto disse...

Uma vez fui na ONG que ela criou aqui no Rio, a Davida, ali na Glória. Fiz uma grande matéria mostrando a vida das prostitutas da Vila Mimosa e conheci a Cleide, criada na Vila, se formando em Sociologia, se não me engano, na UERJ. Estes contatos mudaram completamente minha visão da profissão e de como existem mulheres que optaram por isso com vontade e consciência, E de como devemos respeitá-las em suas escolhas. Gabriela realmente era sensacional. E um tapa na cara de toda essa sociedade hipócrita...

Anônimo disse...

Importante e séria reflexão que traz à tona um segmento social tão marginalizado, tão desprezado e, paradoxalmente, tão "útil e usado", desde sempre.Se é escolha pessoal, se compulsoriedade,se contingência, a mim não interessa. Importa, sim, o respeito e a compaixão que tenho por essa gente.Parabéns ao Fernando por esse mosaico de palavras tão fortes e pertinentes ao texto! E,claro, VIVAS á Gabriela!
Terê

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics