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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A esfinge, a mídia, e o rio


texto e ilustração por Ana Beatriz Rosa*

É difícil falar das violências simbólicas, dessas assim... estapafúrdias. Parece mesmo difícil falar das violências corriqueiras, normatizadas e naturalizadas no nosso convívio social. Falar sobre a violência do nosso cotidiano já parece tarefa árdua demais para um certo puritanismo-pacífico-opressor das grandes mídias – inibem as línguas e os corpos para fazer valer seu próprio conceito-notícia quando o assunto é a violência. Neste processo, uma ardilosa política dos “cidadãos de bem” parece ganhar corpo desde que as manifestações de junho iniciaram o seu work in progress. Entoar hinos de louvor em defesa de patrimônios e capitais e esquecer de pessoas – essas, de carne e osso – parece ter ganhado ares de normalidade.

De um lado parte da cobertura midiática parece entoar louvores aos bons modos durante as manifestações, de outro, para complementar, ecoam gritos condenando os possíveis “vândalos” que habitam entre nós. Sempre que penso sobre isso me vem um trecho do poema “Nossa truculência”, da Clarice Lispector que diz:
“(...)é preciso não esquecer/ E respeitar a violência que temos. (…) A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue/ e com sangue corta-se a união que é o cordão umbilical/ E quantos morrem com sangue/ É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida/ A truculência é amor também”. 
Parece mais fácil apontar vândalos entre nós que observar o vandalismo em nós, na maneira como nos relacionamos uns com os outros.

Querendo brincar de separar o joio do trigo, as linhas editoriais das empresas que monopolizam a comunicação no Brasil (seis famílias controlam 70% da imprensa no país) parecem não se preocupar que algumas raízes possam estar entrelaçadas a ponto de dificultarem os cortes.

Não seria mais útil criar manuais? Vejamos... "Cartilha para o bom manifestante", ou quem sabe, "manifeste-se bem, para manifestar sempre". Talvez com as cartilhas os manifestantes possam melhor entender como servir bem para servir sempre. Um conjunto inteiro de cartilhas de etiqueta para protestos! Parece boa a ideia, não? E pode vender! Como manda o figurino.

Estou chegando à conclusão de que é mesmo difícil falar da violência. Parece ser difícil reconhecer violência em atos não “materiais”, estes que não estão ao alcance das mãos mas ainda assim perpassam os corpos. Como, em uma sociedade onde tudo se toca e dá valor (feito moeda de troca), perceber e condenar violências que não atacam bens, produtos e coisas, mas pessoas? Como fazer com que pautas como essas tornem-se fundamentais, para além das obviedades? Afinal, o que é mais violento? Quebrar paredes ou quebrar gente? A comparação parece esdrúxula? Também imaginei que sim, não fosse muita vidraça valer mais do que muita gente por aí.

Vai ser difícil ouvir em noticiários que o senhor que mora na minha calçada é violentado todos os dias. Que no corpo a corpo da pirâmide social todos nós nos violentamos enquanto sustentamos a paz e a boa vida dos 'inocentes do Leblon' como já poetizou Drummond. Que a moça que é estuprada é vítima, e sempre vítima de uma violência física e simbólica mergulhada no machismo nosso de cada dia. Que o Amarildo foi violentado, brutalmente violentado, e que tantos outros como ele também são. Que o diferente e estranho aos padrões de conduta da nossa moral 'partilhada' é violentado na sociedade dos iguais. Que o que escapa à heteronormatividade, ao patriarcado, que não é branco nem puritano, vai ser violentado mais dia menos dia. Que aquela criança que não precisa de gênero para se entender vai ser violentada pela limitação dos que mal se entendem...

Como é difícil ouvir alguém falar da violência urbana cotidiana, da violência do capital, da violência econômica, das segregações sociais, do preconceito, da violência do medo nas cidades.

O discurso de grande parte da nossa imprensa é violento quando desrespeita a comunicação como lugar de conhecimento e transformação do mundo, quando desrespeita grande parte população que raramente se sente representada. Tenho a impressão de que estes discursos produzidos também compõem a própria locomotiva da violência social, da violência do capital, da violência nas ruas, afinal.

Falar sobre a violência não é fazer apologia a ela. Ignorar que a violência existe todos os dias é. Fazer um recorte das manifestações priorizando os tais atos de “vandalismo” também. Talvez seja mais importante reconhecer primeiro a violência do Estado, do descaso dos poderes públicos, da ganância de muitos, da indiferença de tanta gente sobre as milhares de vidas condenadas à (sobre)viver todos os dias. É importante falar dos que morrem de fome e dos que sobrevivem com salários de fome também, porque viver está caro.

É importante, por fim, saber respeitar o rio quando as margens o oprimem demais, trata-se de respeitar uma sociedade que, como pode, está dizendo que como está não dá mais para continuar. Bertold Brecht tem uma frase muito bonita que já foi usada por muita gente de olhares atentos: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem” – pois já está na hora de começar a chamar. Por menos vidraças nos noticiários! “Decifra-me ou devoro-te”, é o que eu escuto das ruas.

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*Ana Beatriz Rosa, especial para o NR. É jornalista nômade e poeta praticante. Tem os sentidos voltados para experimentos artísticos e poéticas urbanas. Nas horas nem tão vagas garimpa olhares, palavras e ideias para o Café com Pitanga - um o espaço de comunicação antropofágica. Mora no Rio de Janeiro.

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