.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 17 de março de 2014

Era do rádio particular

por Cidinha da Silva

Minha era do rádio durou da infância aos primeiros anos da juventude, já em São Paulo. Em Belo Horizonte duas estações me formaram, Inconfidência FM, a Brasileiríssima, e Alvorada FM. Ali apurei o ouvido e o gosto musical. Ali conheci samba de primeira linha, Jazz, música erudita e chorinho, a música dos deuses.

Nas estações de rádio AM, preferidas de minha mãe, também ouvia música boa: Clara Nunes, Elizeth, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Angela Maria, Jamelão, Agepê, Martinho da Vila, Beth Carvalho, a queridíssima Alcione, Roberto Ribeiro e um pouquinho ainda do Trio Esperança e do Trio Mocotó. Ouvia muita valsa e bolero. E minha mãe cantava tudo o que a encantava, com voz bonita e afinada.

Tinha também os impagáveis programas policiais da Glória Lopes, que iam dos tenebrosos crimes do esquadrão da morte, atuante nas periferias da cidade, aos casos hilários dos bêbados e maridos infiéis perseguidos pela Loira do Bonfim, fantasma residente no Cemitério da Saudade.

Belo Horizonte, Velhorizonte, Belzebuzonte! Horizonte para todo gosto. Cidade pródiga em conservar o velho e fossilizar o novo. Ainda hoje, quando ligo o rádio nos dezembros chuvosos que passo por lá, sintonizo as estações do passado e encontro os mesmos programas e os mesmos radialistas de 30 anos. Só mudam quando morrem e não duvidarei do dia em que fizerem programas psicofônicos.

A crônica esportiva é uma fábula. Não pensem, vocês do Rio e de São Paulo, que Alexandre Kallil, presidente do Atlético Mineiro, campeão das Américas, seja peça rara. Não é não! Aquele bairrismo arraigado e atroz, o fanatismo, tudo isso está presente no rádio mineiro, como de resto, na cidade.

Contam que nos anos 50 ou 60 havia um juiz de futebol, torcedor doente do Galo, que quando a bola saía de campo, chutada por um adversário do Atlético, ele apitava, virava-se para o jogador alvinegro mais próximo e ordenava: “Vamo, meu filho, vamo! Bola nossa, bola nossa, bate logo o lateral”. Frase célebre de um cronista de Belo Horizonte diz que atleticano torce até contra o vento, se a camisa do Galo estiver secando no varal.

O comentarista esportivo moderno, isento, constitui figura novíssima e escassa no rádio mineiro. O que predomina são os comentaristas apaixonados, que mal disfarçam a predileção por um time e, declaradamente, descaradamente, torcem por Minas, enaltecem Minas no cenário nacional.

O rádio é uma recordação muito boa e feliz. E agora, graças ao programa “À beira da palavra”, inscrevi meu nome na história das rádios educativas de São Paulo e do Brasil. Não lembro exatamente o que falei, penso que a concentração exigida pelo veículo e por meus ágeis entrevistadores embotou minha memória. A única lembrança nítida foi a resposta à pergunta sobre futebol / literatura.

Na literatura, em que posição jogo? No ataque ou na defesa? Em nenhuma das duas, respondi. Eu gosto do meio, gosto de armar o jogo. Não adianta ser Romário ou Reinaldo, se não houver Sócrates, Cerezo, Falcão, Zidane, Didi, Júnior que era lateral, mas dava tratos à bola como meio-campista genuíno e passava-a redonda aos atacantes.

E como literatura é um jogo jogado junto, meu barato é armar, pôr a bola para rolar e deixar meus leitores e leitoras na cara do gol.

* * * * * * * 

 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics