por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Chegamos ao bairro quando eu tinha dez anos. Do lado esquerdo da casa onde viveríamos os sete anos seguintes, havia um terreno baldio, o campinho oficial das peladas dos meninos da rua. Só deles, pois meninas brincavam de bola com as mãos, jamais com os pés. Eles pareciam um bando de gafanhotos, e recebiam um reforço especial quando meu pai cismava de entrar no jogo, descalço e com o short escorregando pança abaixo, feliz da vida. A bola suja de terra teimava em vazar para o nosso quintal e carimbar as roupas postas para quarar ou secar. Era recebida com impropérios variados e devolvida ao cabo de muita negociação.
À direita, uma família japonesa, isto sim uma grande novidade. Três gerações na mesma casa, incluindo uma trinca de crianças de idades próximas às nossas. Àquela altura, já havia uma grande comunidade nipônica no interior de São Paulo, mas nunca havíamos convivido tão de perto.
A integração da galera miúda foi imediata. Para nós, havia pouca diferença entre as casas e a rua, pois as crianças transitavam livremente. Quando não estávamos na escola, nos juntávamos na rua para a amarelinha e o campeonato de pião, ou entrávamos em alguma casa para filar bolo com groselha e nos abrigar do sol a pino. Os adultos não se enturmavam muito, interagiam apenas em função da criançada circulante.
A casa do Seu Zé e da Dona Elisa era muito diferente. Logo na chegada, estranhamos os canteiros de agrião na frente da casa, onde normalmente se plantavam jardins. Em sua primeira visita à nossa nova casa, meus avós ficaram muito impressionados com o tamanho e o viço dos agriões, cultivados na terra e não na água, coisa desconhecida para eles, grandes apreciadores de hortaliças. Ficaram ainda mais maravilhados quando descobriram a enorme horta que a Dona Elisa e os sogros cultivavam no terreno dos fundos, enquanto o Seu Zé dava duro em sua oficina mecânica. A horta era mesmo uma beleza, mas eu estava muito mais interessada nos estranhos cheiros daquela casa e nos sorridentes velhinhos japoneses, capazes de dizer umas dez palavras em brasileiro, se tanto.
Pendurado na parede da sala, um retrato dos velhos quando jovem casal se aventurando do outro lado do mundo e o indefectível calendário com a foto do monte Fuji, distribuído pelos comerciantes, que adornava todas as casas, japonesas ou não. Nas datas festivas nipônicas, a Dona Elisa mandava um dos meninos entregar lá em casa um prato de deliciosos bolinhos doces à base de feijão ou uma goma colorida que, se bem me lembro, era feita com amido de arroz. Uma forma de demonstrar seu contido apreço por aqueles vizinhos pra lá de animados.
Em certas noites quentes do nosso mundo, o velhinho se sentava na cama, com a janela aberta para a rua, e tocava o que nos parecia um banjo de três cordas, cantando a mesma melodia, imóvel, horas a fio. Desde a primeira vez que ouvi, me impressionou aquele canto triste, com ondulações na voz que pareciam acompanhar o som do instrumento. As não mais que três ou quatro notas daquela melodia estão aqui, intactas na minha memória, tanto na batida das cordas quanto na voz do Seu Tsuha. Ele provavelmente desconhecia a palavra “banzo”, que acho até que existe em japonês – a palavra, com outro sentido – mas era este o sentimento, então indefinível, que me tomava quando, encolhida nos panos da minha cama, dormia ouvindo aquele som pungente.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.
5 comentários:
Ah, como eu gosto dessas suas incursões ao passado, não para retratar saudosismos (não tem sua cara), mas para nos contar fatos e coisas engraçadas, curiosas; para nos apresentar gente e costumes diferentes e interessantes!
E a ilustração do Fernando que "pula" de dentro do texto, é outro presente!
Terê
Essa foi pra mim!
(Banzo é o meu nome essa semana, recém chegada de Salvador.
No lugar do banjo, os atabaques...)
Linda!!
Beijo, Carol Mendes
Banzo....banzo....voltei quarenta, cinquenta anos .Não é simplesmente saudade, nem tristeza, nem desejo de voltar a ouvir o velho japonês tocando suas notas cheias de dor . É indescritível , o que me leva a contemplar, com emoção, seu poder de rever no papel, com sua pena preciosa, os fatos de um passado ainda não remoto. Doeu, sim, na alma,"ouvir" o canto langoroso do" seu" Thsua, assim como me doem lembranças de tempos alegres com filhos ainda crianças, papai ao lado, vizinhos, amigos, colegas de faculdade, e o cheiro de bolo de laranja ao final das tardes quentes e ensolaradas.
Que memória ! Que lembranças !
Beijos da Mummy Dircim
Agora você foi longe.... Li e me vi na rua e no campinho completamente imundo da terra vermelha com "a galera" da época...
E mais: às vezes o Seu Tsuha tocava o seu banjo e cantava a mesma melodia na soleira da porta da sua casa ao entardecer e a sua netinha dançava poucos movimentos, mas eram harmoniosos, até o sol cair. Eu parava assistindo aquele espetáculo e imaginando como seria o mundo do outro lado. Márcia Ester
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