por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
A notícia mais linda deste fatídico 2014, quiçá da década, veio da Argentina: Estela de Carlotto, líder das Avós da Praça de Maio, pode finalmente conhecer e abraçar seu neto, nascido na prisão, trinta e seis anos atrás. Se alguém ainda duvida da maldade humana, as histórias dos bebês e crianças roubados às suas mães, pais e famílias não deixa fio solto.
Passados vários dias, ainda sinto no coração, na garganta e nos poros a onda eletrizante gerada pelo acontecimento, celebrado em imagens, memórias, entrevistas, lágrimas e cantorias desaforadas dessas incríveis mulheres. Pouco mais de trinta anos atrás, elas minaram e arruinaram o regime dos vampiros fardados, com a força da sua tenacidade e dos seus gritos de indignação. E não vão ter nem dar sossego, até localizarem tantos filhos e netos quantos lhes forem possíveis. Situação que se repete em várias partes desse nosso mundo farto de famílias destroçadas em nome do inominável.
Por mais que a notícia me emocione, não tenho ideia do que há por trás dela. Até o momento, minha história de ter e criar filhos, com tudo o que possa conter de sustos, medo, insegurança, alegrias, descobertas e sentimentos entranhados, passa bem longe de qualquer tragédia. Aliás, a oportunidade de exercer o papel de mãe é para mim um adicional, um presente da vida, que se tornou essencial, mas poderia não ter acontecido. Muitas mulheres não vivem esta experiência, por escolha ou circunstâncias, enquanto muitas outras o fazem por imposições várias, ou por falta de opção.
Fico tentando imaginar o que Estela sentiu quando sua filha decidiu viver como clandestina, durante a rapinagem de vidas promovida pela mais recente ditadura argentina, e desapareceu do contato com a família. Ou quando, ao buscar saber da filha, descobriu que esta havia sido presa e torturada, grávida. Depois, que o neto menino nasceu na prisão, esteve nos braços da mãe por cinco miseráveis horas e sumiu no mundo fabricado para apagar seu rastro. Ou quando recebeu a notícia do assassinato de sua filha. Não passei por nada disto, mas sei como é amar os filhos e sofrer suas dores do corpo e da alma. Tampouco posso avaliar a dimensão do que se passava dentro dela quando lhe registraram, em fotos e vídeos que correram o mundo, a expressão radiante e os dois fachos de luz que eram aqueles olhos, ao celebrar o neto recuperado.
Posso, isto sim, celebrar com ela, e o faço, com todas as minhas forças.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
2 comentários:
Uau, Ju! Vc sabe, como poucos, dar voz e forma, em palavras, às emoções e aos sentimentos de tds nós! Tâ
Muito oportuna a crônica de hoje. O reencontro entre uma avó sofrida em busca do neto raptado dos braços da família tem de ser louvada como exemplo de persistência, amor, carinho. Espero que mexa com a consciência dos “bichos humanos”, destituídos de qualquer sentimento, verdadeiros ladrões da vida alheia . Parabéns Júnia, pela humanidade com que soube impregnar suas palavras tão claras e emocionantes e ao Fernando pela ilustração tão apropriada. É um filho que chega ao lar após peregrinar por caminhos desconhecidos, que redime o sofrimento de uma avó obstinada e nos dá coragem para continuar lutando contra os abutres invasores da felicidade do próximo.
Beijos da Mummy Dircim
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