por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Aquela pequena maravilha pertencia ao mundo dos adultos. Seu ruído me chamava. Era um tlec tlec tlec blim tlec tlec tlec tlec tlec blim que me fazia imaginar como eu seria poderosa quando pudesse usá-la. Eu sabia que era uma máquina de escrever, que cada tlec tlec correspondia a uma tecla de letra e o plim era quando chegava na margem direita do papel e a gente tinha que empurrar a alavanca à esquerda, que fazia o papel subir um pouco e abria espaço para uma nova linha. Nenhum brinquedo jamais me provocou tanto fascínio, o que eventualmente me levou a aproveitar os momentos em que ela estava ao alcance das minhas mãos e sem ninguém mais por perto.
Era com enorme prazer clandestino que eu pegava uma folha de papel, introduzia-a no cilindro com uma das mãos, enquanto o girava com a outra. O papel entrava, às vezes meio de lado, ou com a ponta dobrada; fui aprendendo a ajeitá-lo e a dominar os truques daquele aparelho genial, onde eu podia brincar com as letras e palavras como num quebra-cabeça só meu, sem princípio nem fim. Quando se deram conta, eu já podia bater à máquina com razoável agilidade e precisão, usando os dedos “errados”, pois datilografar era uma arte cheia de métodos e regras. Eu bem que tentei, mas jamais consegui fazer como ensinavam nos cursos.
Depois vieram as máquinas elétricas e, mais recentemente, os computadores. Tudo é possível com a tecnologia digital aplicada a esses teclados modernos. O que vai para as folhas de papel impressas nessas traquitanas são produtos limpos e acabados, pois qualquer ajuste é feito na tela, jamais no papel.
Ontem fui procurar na internet uns documentos oficiais do final da década de setenta. Encontrei folhas de papel digitalizadas, com a aparência e a estética originais. Amoleci por dentro e entrei no clima. Resolvi aplicar uma aparência de máquina de escrever ao relato que eu havia começado a escrever, mas, por incrível que pareça, não consegui reproduzir ao computador as imperfeições sujinhas da minha amada Olivetti Lettera 22 portátil. Um conflito de gerações, provavelmente devido às minhas limitadas habilidades no mundo digital. Vou de itálico.
Morei no Rio por um breve período, entre 1978 e 1980. Vinha de Brasília, que era então um lugar muito tranquilo e silencioso. Uma das minhas primeiras saídas foi para ir ao banco. Instalada em Botafogo, e seguindo instruções precisas, peguei um ônibus para Copacabana, via Túnel Velho. Ao sair do túnel, dei com um barulho intenso e contínuo, um ronco alto, como num galpão industrial. Quando saltei do ônibus (em carioquês), que deve ter sido nas imediações da praça Cardeal Arcoverde, então isolada por tapumes e completamente destroçada pelas obras do metrô, o barulho continuava, como se estivesse me seguindo. E estava. Logo percebi que aquele era o ruído do bairro, uma mistura de tráfego pesado com um mundo de gente fervendo nas ruas de altíssima densidade humana.
Entrei na agência bancária e fui para a fila do caixa. Pouco depois, entrou um sujeito, segurando papéis e dinheiro na ponta dos dedos, vestindo apenas uma sunga e calçando chinelos de dedo. Vinha da praia, obviamente, e me deixou tão atônita que eu duvidei dos meus olhos. Fiquei esperando que o segurança o pusesse porta a fora, mas ele se encaminhou para a fila e esperou tranquilamente a sua vez. Mais chocante ainda. Nunca na vida eu havia pensado que alguém poderia ir ao banco pelado. Era o primeiro dos muitos espantos que o Rio causaria na minha provinciana pessoa.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
Um comentário:
QUE TANTA CURIOSIDADE A JUNINHA GUARDAVA NAQUELA CABECINHA FANTÁSTICA ? CRIATIVIDADE NUNCA LHE FALTOU E CADA VEZ DESCUBRO MAIS PORQUE MINHA FILHOTA ERA TÃO QUIETINHA, ACOMODADA NOS CANTINHOS DA INFÃNCIA, ENQUANTO SEUS IRMÃOS ERAM VERDADEIROS FURACÕES !!!!!
PARABENS A VOCÊ E AO FERNANDO.
BJS DA MUMMY DIRCIM
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