por Carlos Conte*
Fico com a charge de Rodrigo Visca, Folha de S. Paulo, dia 6 de agosto: o dia da ressaca. A festa da democracia acabou com meu fígado. E o seu? Já reparou no gorfo no pé da cama? Não deu tempo de chegar no banheiro, a ânsia foi tanta que não deu tempo de tirar o tênis, o jeans, a camisa, e a lâmpada está acesa, e da cama vejo a luz do dia, árvores, o muro do vizinho, está tudo lá, e não existe vontade nenhuma de encarar a realidade, mas é preciso. É preciso ficar atento. Foi uma festa destruidora: só tinha gente chata e cerveja morna.
Fiquei sabendo que uma idosa escorregou num monte de santinhos e bateu a cabeça feio na calçada. Essa para mim é a imagem dessas eleições. Fui votar querendo ir ao parque. O trânsito estava pior que em dia de semana. Ninguém espera pegar congestionamento num domingo, acho que é por isso que as pessoas acabam ficando mais nervosas. Na fila de votação, um homem na minha frente pediu pra esposa ver na lista de candidatos se o deputado fulano de tal estava concorrendo. Ela foi. Não, fulano não estava. Então perguntou à esposa em quem ela ia votar. Também não sabia. Qual é o número mesmo daquele que defende o consumidor na TV? A esposa voltou ao quadro. Ali estava!
A fila estava uma merda comprida quebrada pela metade, em forma de L, dando a volta no corredor, um pedaço dela apontando para o pátio, o outro entrando na sala de votação, em que alguns meninos morrendo de sono faziam alguma coisa pra que aquilo tudo funcionasse decentemente, anotavam documentos, faziam assinar um papel e tudo estava pronto. Próximo! Nenhum bêbado, nenhuma bandeira. Pessoas apressadas querendo acabar de vez com aquilo para acender a churrasqueira. Nem futebol. Uma menina feia com roupa de academia e cara de tucana veio pro meu lado na fila perguntando se aquela era a seção eleitoral correta. Infelizmente era. Ficou olhando pra minha cara, talvez querendo saber em quem eu ia votar, por um momento pensei que ela estava a fim de mim, mas era mesmo papo de eleição, e eu não queria mesmo falar sobre isso. Se não fosse tão feia...
– Não sei. Estou indeciso.
– Indeciso?! Até agora?! – mas falou tão alto que outras pessoas na fila ouviram e passaram a participar da conversa. Aí todo mundo se sente autorizado a participar da conversa, tipo quando tem engarrafamento monstro na estrada e todo mundo sai do carro ou quando cai árvore na rua de casa e as pessoas vão ver o que aconteceu. Está todo mundo no mesmo barco. E foi então que eu confirmei minhas suspeitas: todos ali eram tucanos e não poderia ser de outro jeito numa escola de classe média na zona oeste de São Paulo. Tucanos e Telhadas. Tucanos e Russomanos. Onde estavam os Tiriricas? E os Felicianos? Aliás, você viu esse cara agradecendo ao movimento LGBT pela votação? Falou que a vitória não foi dele, mas da família tradicional. Eu seria capaz de dar uma surra nesse cara. No meio de tanta lei, tanta regra, será que não tem nenhuma pra dar um jeito nele?
As Jornadas de Junho terminaram quando a imprensa abraçou a causa e centenas de milhares de pessoas foram às ruas com a bandeira do Brasil. Na verdade, as Jornadas nem deveriam ter começado. Melhor se ficasse naquelas primeiras manifestações no centro de São Paulo. Mas, de qualquer forma, as pessoas ficaram esperançosas depois de junho. Bem ou mal, alguma coisa se acendeu, as pessoas se entusiasmaram, parecia que até que as pessoas estavam mudadas. Cheguei a acreditar nessa história. Sou otimista, embora não aparente. E por um instante acreditei. Não demorou, vieram as bandeiras do Brasil. Não demorou, as famílias reunidas cantando o hino. Não demorou, a imprensa... e os partidos, todos eles, da extrema esquerda à extrema direita, assumiram o grito das ruas como se fosse deles. Pulei fora.
Dois dias depois, tento entender por que ainda vivo neste estado. Neste país. Dá-lhe, Eparema. A bebedeira foi brava. Não foi? E esse papo que tá rolando no face de ir pro Uruguai, confere?... Tô sabendo que é difícil, mudar de vida, largar o trampo, mas o Uruguai é logo ali. Desencana desse Feliciano, depois a gente dá um jeito nesse cara, agora é hora de descansar a cabeça. Dormir. Ouvir o Suplicy cantando “Blowin in the Wind”. Tomar uma ducha. Calma. Uma hora passa.
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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
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