por Ricardo Viel*
O mar traz a uma pequena vila de pescadores um afogado que, de tão grande, é confundido pelos meninos que brincam na praia com uma baleia. Retirado do mar, vê-se que se trata de um morto desconhecido. É limpo e cuidado pelas mulheres da localidade, que se apaixonam ao verem sua beleza e virilidade. Os homens o invejam e o respeitam. Depois de um esplêndido funeral, digno da altura e beleza do morto, a vila cai em um desamparo. “Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outro para perceber que já não estavam completos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente a partir de então, que suas casas passariam a ter as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Esteban pudesse andar por todas as partes sem tropeçar com traves”. Embelezariam a vila com flores para que de longe percebessem que aquele era o lugar de Esteban.
Assim como o afogado do seu conto, Gabriel García Márquez deixou marcas indeléveis em nossas vidas. Um antes e um depois. Já não somos os mesmos após ler sobre a solidão dos Buendía, a saga dos amores contrariados de Florentino e Fermina e Maria de Los Placeres, a absurda morte de Santiago Nasar, a infinita tristeza de Cândida Erêndira. E tanto é assim, que já não nos contentamos com chama-lo de García Márquez. É nosso Gabo, mudou nossas vidas, passou a pertencer a nosso espaço e como o afogado Esteban criou entre nós (seus leitores) laços familiares.
Eu, particularmente, a Gabo lhe devo muito desde aquele verão ainda do século passado quando comprei em algum lugar do Peru ou Bolívia dois livrinhos usados, gastos, com o objetivo de me entreter na viagem e tentar aprender espanhol. Era “Crônica de uma morte anunciada” e “Relato de um náufrago”. Depois daquele dia eu já não seria o mesmo. Quis aprender espanhol para ler Gabo. Li e reli tudo dele e sobre ele, e nunca nenhum escritor voltou a me maravilhar tanto. A ele devo em boa parte o fato de ter me tornado jornalista, e lhe sou grato pelo mês mais intenso e enriquecedor da minha vida que passei em Cartagena fazendo um curso na fundação Gabriel García Márquez.
Gabo dizia que escrevia para que seus amigos o amassem mais. Conseguiu mais do que isso. Conseguiu que uma legião de pessoas espalhadas pelo mundo o amassem e o considerassem amigo ao ponto de chama-lo simplesmente de Gabo. Mas seu sucesso foi também um castigo que o impedia de ter uma vida normal. Comparava a fama com o poder pela solidão a que ambos condenavam. Numa conversa com Plínio Apuyelo disse que o livro que passou a vida escrevendo não era o de Macondo, mas sim “o livro da solidão”. É por isso que foto de Daniel Mordzinski (que ilustra essa texto) em que Gabo aparece vestido de branco e amarelo sentado na beira de cama de sua casa em Cartagena é a imagem definitiva. Está só e tem um olhar perdido e sereno, que provoca afeto e certa pena. Para mim, a foto dá a exata dimensão do tamanho daquele homem e de sua solidão.
Na quinta-feira, 17 de abril, logo após o anúncio da sua morte, recebi mensagem de muita gente querida que dizia basicamente que havia lembrado de mim. Gente que sabia o quanto eu amava e era grato àquele homem a quem nunca conheci, mas que tanto fez e fará parte da minha vida. Minha dívida só não é maior do que minha admiração. Muchas gracias, Gabo.
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Ricardo Viel, jornalista, atualmente mora e trabalha em Lisboa, Portugal. Imagem: Daniel Mordzinski
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