por Cidinha da Silva*
Assustava o mundo sensível a onda de linchamentos de pessoas negras executada por justiceiros que escolhiam pretos anônimos, desamparados pela lei, como exemplos para coibir as conquistas políticas e sociais dos negros “protegidos” pela lei de forma mínima. Ou seja, havia um recado para os pretos ascendentes: “recolham-se ao lugar estipulado ou serão vocês o próximo alvo.”
O propósito era acuar os pretos no micro-espaço, aterrorizar as comunidades negras da região onde ocorria o linchamento. A favor dos humanos negros só a vulgarização tecnológica. Pessoas indignadas registravam e divulgavam os atos bárbaros com celulares no afã de não esquecê-los, de impedir que fossem ocultados, de forçar investigação, julgamento dos linchadores e punição. Por fim, que o resultado final do registro fosse acordar a população da letargia ignorante de tais atos e cercear já no campo da intenção, o próximo linchamento.
Mas, como justiça não havia, o pânico se instaurava. O pavor de ser o próximo alvo intimidava tanto, que, não raro, as pessoas negras fugiam do tema. Enquanto em uma cidade o filho do mega-milionário atropelava, matava, era julgado rapidamente e pagava a sentença com trabalhos de re-socialização, em outra, um playboy bêbado atropelava ciclista trabalhador, arrancava-lhe o braço e atravessava bairros com o membro agarrado ao retrovisor. Em dado momento o meliante percebe a marca do crime, pára o carro, abrupto, e joga o braço do ciclista no esgoto, impune. Numa terceira cidade, uma patricinha, estudante de Medicina, atropelou e matou um gari, arrancou o carro sem prestar socorro, enquanto lamentava a sujeira de sangue na lataria. Não por coincidência, eram todos brancos, criminosos de fato e protegidos pela lei do mundo do faz-de-conta.
No mundo real, entretanto, eram sempre negros os alvos dos linchamentos. Qualquer motivo, qualquer suspeita, qualquer vacilo diante das regras do stablisment, justificava a eliminação física do suspeito. Mas aqueles não eram os alvos reais. O objetivo final era intimidar os negros insurgentes que tinham pelo menos uma noção vaga de direitos, os cotistas de universidades públicas, artistas, estudantes matriculados e uniformizados, negros intelectualizados, aspirantes a profissionais bem sucedidos, todas as pessoas portadoras de identidade negra em expansão.
Restava saber se os pretos se recolheriam aos lugares pré-definidos, iludidos pela mentira de não serem o próximo alvo. No Brasil, os negros estavam por sua própria conta desde o momento da gestação e os linchadores sabiam disso.
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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum. Desenho: Latuff
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