Em verso genial do poema “rondó da ronda noturna”, o poeta Ricardo Aleixo nos conta que “quanto mais negro, mais alvo”. Como na letra de “Haiti”, de Caetano e Gil, “rondó” contém doutoramentos inteiros, teses completas sobre a assimetria das relações raciais no Brasil. É o poder de síntese e de expansão da arte.
Engana-se quem pensa que somos vítimas de racismo, somos alvo do racismo, como disse Carlos Moore há décadas, antes de conhecer Ricardo, que por sua vez o disse em 1999, também sem conhecer o Carlos. Existia então, em ambos, o poeta e o antropólogo, compreensão similar desse fenômeno que mata a gente negra, como matou Amarildo da Silva, Cláudia Ferreira, Patrick Ferreira de Queiroz, Douglas Rafael, o DG, e desapareceu a Davi Fiúza, entre milhares de outros homens, jovens, mulheres e crianças negros que não tiveram seus nomes divulgados e são executados pela polícia dia após dia.
Quanto mais negro, mais alvo, só seria dito assim por um poeta. Quanto mais negro, mais visível. Visível por ser alvo, por ser buscado em qualquer lugar, em qualquer classe social, em qualquer situação, seja como Rafael Braga Vieira, morador de rua, preso durante as manifestações de junho de 2013, como se terrorista fosse, por carregar na mochila um vidro de desinfetante e outro de água sanitária, condenado a cinco anos e dez meses de prisão, único preso remanescente das manifestações daquele inverno. Seja como Thamires Fortunato, estudante da UFF, que durante manifestação contra o alto custo do transporte público no Rio de Janeiro no verão de 2015, foi covardemente imobilizada no chão e algemada, depois de ter tido a blusa arrancada e ter sobre si um brutamontes da polícia, paramentado para a guerra, tratando-a como bandido de periculosidade comprovada. Seja como a farmacêutica e doutoranda em Bioquímica Mirian França, mantida presa por 16 dias no Ceará sob acusação de assassinar uma turista estrangeira com quem fizera contato num sítio de mochileiros. Presa porque apresentou contradições em depoimentos à polícia, tais como o número de cafezinhos que a vítima, Gaia Molinari, teria tomado enquanto estiveram juntas. Mirian foi carimbada como principal suspeita da morte de uma pessoa abatida por pancadas fortíssimas e que lutou para se defender. E ela, a suspeita, de compleição física frágil, não apresentava qualquer marca de luta corporal.
Quanto mais negra, quanto mais consciente e senhora de si, mais alvo, como Lília de Souza, jornalista baiana, cujo cabelo black power foi rejeitado por um sistema de renovação de passaporte, obrigando-a a prendê-lo com uma borracha de escritório para que sua imagem fosse aceita.
Quanto mais negro, quanto mais melanina, mais alvo. Quanto mais negro, quanto mais negros juntos, mais alvo, mais auto de resistência. E nessas horas, estamos sós, desprotegidos e sós. Só depois, se sobrevivermos ao susto e à violência, a poesia nos acalentará.
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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum. Imagem: rondó da ronda noturna, poema visual de ricardo aleixo
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