por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Os milhares de motoristas e passageiros que percorrem a W3 norte o tempo todo não veem, não têm como ver. Precisei morar vinte anos na região pra perceber.
Tem a avenida, com blocos comerciais dos dois lados, em toda a sua extensão e, atrás destes, no rumo oeste, pequenos blocos com lojas no térreo e dois ou três andares de apartamentos. Mais atrás ainda, outra linha de lojas e apartamentos. Entre estes e os conjuntos de casas, uma calçada.
Como em tudo o que se construiu aqui em Brasília, especialmente no Plano Piloto, houve uma ideia, um conceito inicial para esse estranho lugar, onde tudo parece improvisado. Ignoro totalmente qual tenha sido a proposta, mas acho que ela ficou perdida pelos caminhos gerenciais burocráticos. Um sinal disto são os endereços ininteligíveis, até mesmo para esta cronista candanga veterana.
O que se encontra, ao explorar a área, é uma calçada que começa e acaba de repente, começa e acaba de novo, sem qualquer razão aparente. De um lado, os fundos dos apartamentos, meio brutos, mal acabados e cheios de grades ⎼ sob cuja marquise às vezes se abrigam alguns moradores de rua com suas sacolas e cobertores ⎼, pessoas passeando cachorros, carros abandonados, carros estropiados, carros estacionados sobre a calçada, pneus velhos, oficinas mecânicas informais em vagas de estacionamento, lojas transformadas em igrejas evangélicas, pequenos restaurantes que servem por quilo, academias de ginástica e artes marciais e toda uma variedade de pequenos negócios. A melhor parte: como a circulação de veículos na área é complicada e desorganizada, os carros em movimento são poucos e, portanto, não tem barulho de trânsito.
Do lado oposto, as quadras residenciais, com suas casas geminadas e alguns blocos de apartamentos bem mais arrumados, cheias de gramados, belas árvores e cercas vivas. Um verde exuberante e bem cuidado, que abriga passarinhos, calangos, gatos, insetos, borboletas e parquinhos infantis onde ainda não vi criança brincando. Entre os dois territórios quase inconciliáveis, a estreita calçada que aparece e desaparece. Pouca gente circula por ela.
Nas primeiras caminhadas, eu ia imaginando como seria se aquela passarela intermitente fosse transformada num bulevar para pedestres, bem pavimentado e ajustado a caminhantes de todas as idades e diversas condições físicas. Em linguagem moderna, que tivesse acessibilidade, iluminação e sinalização adequadas, talvez uns bancos de praça e alguns lugares de descanso e encontro. Imaginar não paga imposto, inclusive porque desconfio que este lugar deve ocupar a milésima posição na ordem de prioridades do governo local.
Além de mais bonito, atrairia o uso dos moradores, que, no entanto, parecem não estar nada interessados. Minha sensação é de que demos as costas para este lugar, porque fica nos fundos de uma área comercial nada elegante, algo que a vizinhança despreza e não quer nem ver.
Pensando melhor, podia ficar tudo como está, só que com uma calçada contínua e lisinha, onde ninguém estacionasse seus malditos carros, pra que a gente pudesse percorrer a pé, sem interrupções, esse furdunço urbano inesperado no coração do Plano Piloto, cidade bem arrumada, feita para pessoas sobre rodas. Plano é bom, mudar o plano pode ser melhor.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
2 comentários:
Pensar em bem estar e conservação do bem público nunca existiu na cabeça dos responsáveis pela coisa pública. É sonhar com os pés na nuvem.Por sua vez, nossos moradores são muito pacatos,, absolutamente indiferentes a qualquer ação comunitária pró melhoramento e conservação do que existe. Que tal a idéia de agitar o próprio povo dos becos e furdunços, que existem às dezenas,canalizando um pouquinho só de trabalho e esforço para tornar esses cantos em pontos atraentes, até mesmo torná-los pontos turisticos ? Ah!!!! Eu também estou sonhando nas nuvens!
Bjs da Mummy Dircim
Brasília foi proposta para uma sociedade que se preocupasse com o bem estar coletivo. Essa não é a característica da sociedade brasileira e, muito menos, da sociedade brasiliense, que sobrevive reclusa e refém da "necessidade de privacidade" e perde a oportunidade de saber como o bem estar coletivo é interessante. É uma pena! Márcia Ester
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