A mais nova treta
Então quer dizer que as relações entre Brasil e Estados Unidos agora não estão nada bem. E isso poucos meses depois de Barack Obama ter dito em alto e bom som que Lula é o cara. Também parece não importar muito que ambos presidentes já tenham se encontrado cinco vezes desde que o primeiro negro da história do país assumiu a Casa Branca. As divergências estratégicas em alguns pontos cruciais da agenda internacional jogou tudo no abismo da perdição. Pelo menos é o que se lê e se ouve por aí. Uma pena, realmente. Dois líderes históricos, despojados, duas vitórias ambulantes da democracia… Estariam de mal?
Brasil e Estados Unidos, pelo menos neste momento, divergem em basicamente cinco temas transcendentais. Isso porque, durante o governo Lula, depois de todo aquele medo que precedeu sua vitória eleitoral, em 2002, o país, com todos os seus infinitos problemas internos, tem se transformado num ator global de respeito. Aquela época em que Brasília e Buenos Aires ficavam disputando entre si para ver quem tinha mais nível de influência na América do Sul ficou para trás. Agora o Itamaraty dialoga com outros peixes, em outros mares, maiores e mais profundos. E bate o pé com firmeza quando o tema é Oriente Médio, Honduras, Rodada de Doha, mudança climática e as bases na Colômbia.
Tem muita gente que gosta dessa nova posição internacional do Brasil, ainda que por motivos diferentes. Há aqueles que comemoram o futuro que finalmente chegou e acreditam que o caminho agora está livre para o desenvolvimento: primeiro mundo, lá vamos nós. Outros acham que a diplomacia brasileira vem defendendo, com voz cada vez mais grossa, alguns valores importantes no concerto das nações. E que isso é positivo num mundo que se pretende multipolar.
O país, por exemplo, é a favor da existência de dois estados consolidados e soberanos na Palestina, que respeitem as fronteiras estabelecidas pelas Nações Unidas antes da guerra de 1967. É pouco para os árabes, claro, porque mesmo naquele então a ONU já havia destinado mais território aos israelitas, que chegavam aos montes motivados pelo sionismo. Um acordo envolvendo os limites fixados na década de sessenta, porém, junto com o fim dos assentamentos na Cisjordânia, é o primeiro passo para a paz. Poucos duvidam disso, entre eles Tel Aviv. Os Estados Unidos vai na rabeira.
O Brasil também se posicionou contra o golpe de estado em Honduras e promete não reconhecer os resultados das eleições que o regime de Roberto Micheletti convocou para este 29 de novembro. Nada mais coerente para um povo que já sofreu com as arbitrariedades dos anos de chumbo. Até porque o argumento dos militares hondurenhos para justificar a conspiração não consegue se sustentar. Dizem, por exemplo, que estão defendendo a democracia e a constituição, quando na verdade derrubaram um governo legítimo e desterraram o presidente sendo que esse tipo de punição não existe nas leis do país. [ver a democracia nas democracias] Agora vão realizar um pleito. As faixas espalhadas nas ruas pelo governo de facto dizem: en las urnas está el futuro de Honduras. E antes, não estava? A importância do voto não foi tão considerada quando era Manuel Zelaya o beneficiado pela vontade popular…
Há poucos dias, Lula fez o que pouca gente no mundo faria: receber Mahmoud Ahmadinejad em visita oficial de estado e, pecado, deixar-se fotografar ao lado do ultra-conservador persa, fundamentalista religioso e homofóbico convicto. Deixou o cabelo de muita gente em pé ao defender o programa nuclear iraniano, desde que o enriquecimento de urânio seja utilizado para fins pacíficos, como acontece no Brasil. Também defendeu o direito dos judeus se organizarem num estado localizado no Oriente Médio. E ponto. Na visão da diplomacia brasileira, dialogar não faz mal a ninguém. Pelo contrário, isolar países acossados pela opinião pública internacional é que é perigoso.
Depois, a Rodada de Doha. Tem a ver com a liberalização do comércio e o fim das barreiras alfandegárias criadas pelos países desenvolvidos para proteger os setores mais frágeis de suas economias. Os Estados Unidos pregam o neoliberalismo geral e irrestrito, mas não abrem mão de salvaguardas quando lhes interessa. Lula já há algum tempo comprou o discurso globalizante da Casa Branca, mas quer o pacote todo, sem as contradições. O mesmo em relação às bases que serão cedidas pela Colômbia para a instalação de soldados e equipamento militar ianque. Obama prometeu mudar as relações de Washington com a América Latina, mas até agora não deu sinais de que realmente quer um diálogo de igual para igual com as democracias tropicais.
Lula e todos os demais presidentes sul-americanos têm razões históricas de sobra para criticar a presença bélica dos Estados Unidos em solo colombiano. Vão ajudar no combate ao narcotráfico, alega-se. Mas não é Álvaro Uribe que vive discursando sobre o debilitamento das FARC e de outros grupos guerrilheiros que perambulam pelas selvas amazônicas? E, mesmo que realmente necessite da ajuda norte-americana, como alguém pode pretender combater com eficácia a indústria da cocaína apenas agindo na produção – e não na demanda?
Mais: o ex-presidente Ernesto Samper, que ocupou o Palácio de Nariño entre 1994 e 1998, diz que a maquinaria de guerra que será instalada pelo Pentágono na Colômbia não vai se limitar apenas ao combate à droga.
“Coloco na mesa os vários antecedentes das bases. Primeiro, que desde janeiro as bases figuravam nos mapas do Pentágono como parte da estratégia de segurança básica dos Estados Unidos. Segundo, que na solicitação do Pentágono para adequar Palanquero claramente se estabelecia que a base também serviria para neutralizar os governos inimigos dos Estados Unidos. E, terceiro, os tipos de equipamentos que as bases terão: os C17, que transportam até 70 toneladas de material bélico; os Orion 3, que são para espionagem rápida e vão para a base de Malambo; os Boeing Galaxy, que são para transporte em massa de passageiros, e os Awacs, que são plataformas eletrônicas móveis. Esses não são equipamentos para combater o narcotráfico e a guerrilha na Colômbia. A partir das bases, começarão a lançar operações de vigilância sobre a região e vão terminar por nos isolar.” [ver mais em opera mundi]
Cabe um parêntesis: Samper deu essa entrevista na semana passada, mas durante seu governo foi acusado de ter aceitado dinheiro do narcotráfico para financiar sua campanha eleitoral. O caso ficou conhecido como Proceso 8.000. [ver mais na wikipedia]
Por fim, a conferência do clima em Copenhague. O Brasil acaba de anunciar suas metas de redução nas emissões de gases causadores do efeito estufa. Vai baixar a produção de CO2, segundo anúncio oficial do governo, em 36 ou 38 por cento em relação aos níveis previstos para 2020. Mais que uma declaração de boas intenções, Lula quer que essa promessa se transforme em lei e já está mexendo seus pauzinhos no Congresso para viabilizá-la. Quando visitou a China, em novembro, Barack Obama disse que não ia se comprometer com nada, e que não assumiria nenhuma responsabilidade legal sobre as decisões de Copenhague. Hu Jintao, premiê chinês, foi na onda. Não é à toa que os dois governam os países que hoje em dia mais abreviam a vida do planeta em nome do crescimento econômico. Pegou tão mal que Washington voltou atrás. Agora propõe um corte de 17 por cento em relação aos níveis de 2005, a serem executados nos próximos dez anos. Claro que não é suficiente. Nenhuma das soluções dentro do sistema é suficiente.
Não é questão de contrapor a diplomacia brasileira e a estadunidense ou fazer uma rápida avaliação de qual contribui para a paz no mundo e qual trabalha pela destruição iminente da Terra, seja por guerras ou hecatombes ambientais. O problema é Barack Obama. Sua figura política leva esperança ao mundo, mas é uma esperança falsa. Basta dizer que o presidente incrementou o número de soldados no Afeganistão um dia depois de ter recebido o Prêmio Nobel da Paz. Prometeu desocupar Guantánamo, mas voltou atrás e disse que vai ser difícil abrir mão da base que mais pisou nas convenções internacionais de direitos humanos ultimamente. Também vai reconhecer as eleições hondurenhas, organizada em meio à morte de pelo menos 26 opositores da ditadura, e não aceita que outros países enriqueçam urânio para produzir a bomba, sendo que os Estados Unidos estocam um arsenal nuclear imenso e, como se não bastasse, foram a única nação que teve coragem de lançar um artefato atômico contra civis.
Portanto, é válido que o Brasil emerja como ator global para resguardar determinadas posições democráticas e marcar diferenças em relação às grandes potências mundiais quando estas não fazem mais do que esconder contradições grotescas por debaixo de discursos pomposos em defesa da liberdade que já não enganam mais ninguém.
Complicado é o governo começar a se utilizar dessa posição de destaque no cenário internacional para se impor aos demais países latino-americanos com ares de nação hegemônica. Nenhum dos vizinhos – seja na bacia do Prata, nos Andes ou no Caribe – está a fim de continuar ocupando um papel subalterno em relação à sua própria história. Não há interesse em mudar de amo, mas de tomar as rédeas do próprio destino. O Brasil, como potência regional ou seja lá o que for, é tão ruim para as nações que a ele se submetem como os Estados Unidos, a Europa ou qualquer outro país. A Petrobras, por exemplo, apesar de ser idolatrada aqui, é vista como qualquer outra companhia transnacional pelos bolivianos, equatorianos ou peruanos, uma corporação que chega, extrai, polui, empobrece e vai embora com mais dinheiro do que deixa. O mesmo acontece com a Odebrecht, Camargo-Corrêa e outras empresas alabadas pelo governo Lula e apoiadas pelo BNDES em suas empreitadas latino-americanos.
A “liderança natural” do Brasil dentro da América do Sul é um papo que cansa os demais presidentes da região. A diplomacia brasileira tem trabalhado muito bem no geral, mas ainda não acordou para o fato de que ninguém aqui precisa de líderes. Buscam-se, isso sim, parceiros. Antes foi a Espanha, depois a Inglaterra, depois os Estados Unidos e, agora, ao que parece, vai ser o Brasil a dar as cartas por aqui. O que é que muda para Equador, Argentina, Venezuela, Bolívia, Peru, Colômbia, Uruguai, Paraguai? Arriscaria a dizer que não muda nada. A mudança, pelo contrário, seria a instauração de uma ordem sul-americana livre de potências hegemônicas. Isso demanda respeito e solidariedade, que não condiz com interesses econômicos expansionistas ou ânsias de liderança perante o mundo.
Talvez o maior sinal de que os países vizinhos não querem entrar debaixo da asa do Brasil tenha sido dado em Manaus, na conferência sobre mudança climática. Lula chamou os presidentes da bacia amazônica para discutir, com a presença de Nicolas Sarkozy, uma proposta unificada para Copenhague. Além do europeu, representante da Guiana Francesa, apenas o mandatário da outra Guiana compareceu.
A ascensão política do Brasil no cenário internacional, se não for bem direcionada pelo Itamaraty, pode entornar o caldo da integração latino-americana e começar a fortalecer, a exemplo do que acontece com os Estados Unidos, uma espécie de sentimento anti-brasileiro que já existe na região.
Tadeu Breda é jornalista e estreia hoje sua coluna neste blogue Rodapé. latitudesul.wordpress.com
3 comentários:
Tadeu, se você fosse jogador de futebol, diria que fez a estreia marcando um golaço e dando a vitória à equipe! Parabéns pela análise.
estranho... em meio a uma análse da política externa do Brasil não há ao menos uma palavra sobre a invasão do Haiti!
dei até ctrl+f para me certificar que não ia escrever besteira, mas é isso mesmo.
por quê?
oi, anônimo.
o objetivo principal do artigo era analisar as principais diferenças entre as diplomacias brasileira e estadunidense neste momento: honduras, copenhague, bases na colômbia, irã e rodada de doha. por isso acabei passando batido pelo haiti, tema em que brasília e washington estão de pleno acordo.
mas vc tem razão. eu não poderia ter esquecido que nosso exército lidera a minustah quando sugeri que a emergência do brasil como ator de peso no contexto geopolítico global pode desembocar em posturas hegemônicas em relação aos governos vizinhos.
a ocupação da ilha caribenha, ainda que conte com a participação de outros países latino-americanos, talvez seja uma dos maiores exemplos desse risco.
obrigado pelo comentário.
tadeu
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